quinta-feira, 2 de junho de 2011

A mentira da verdade


Há formas de dizer a verdade que se convertem em mentiras. Por isso é importante avivar o discernimento para não se deixar enganar. Como nos é contada a verdade através da imprensa, da escola, do poder, da publicidade, da versão oficial? Porque se afastam sempre tanto os cálculos dos participantes numa manifestação, dependendo de quem os faz, sejam os polícias ou os organizadores? A ingenuidade revela-se o pior aliado para decifrar o sentido da realidade.

Convém, antes de mais, advertir que se podem dizer as maiores mentiras dizendo verdades incontestáveis. Uma noite, o oficial en¬carregado do diário de bordo embebedou-se e, dessa vez, a descri¬ção do dia teve que ser redigida pelo próprio capitão, que, no final, acrescentou esta nota:

"Hoje, o tenente embebedou-se". Nota que, naturalmente, ofendeu o oficial, tanto que no registo do dia seguinte se permitiu acrescentar, também, uma nota: "Hoje, o capitão não se embebedou".
Eis uma forma de alterar a verdade: explicá-la de forma que a linguagem leve a interpretá-la no sentido contrário. Não restam dúvi¬das de que, neste relato, a intenção do oficial não podia ser mais perversa. Dizer a verdade era taxar de bêbado alguém que, por acaso, nunca bebia.

Outra forma de forçar a verdade é descontextualizar a expressão que a manifesta. Uma explicação fora do seu contexto pode ter um sentido diferente daquele que o autor quis, realmente, manifestar. Demonstrá-lo-ei com uma anedota que Luis Carandell relata na sua obra El Show de Sus Senorías:
O arcebispo de Canterbury realizou, numa ocasião, uma viagem a Nova Iorque.
- Eminência, tenha muito cuidado com os jornalistas de Nova Iorque porque forçam, frequentemente, as declarações - disseram ao arcebispo antes de sair de Londres. Ao desembarcar no aeroporto nova-iorquino havia uma conferência de imprensa e um dos informadores perguntou ao prelado:
- Monsenhor, o que opina sobre os bordéis do este de Manhattan?
- Há bordéis no este de Manhattan? - perguntou o arcebispo, exagerando na prudência. No dia seguinte, alguns jornais de Nova Iorque tinham como título de primeira página: Primeira pergunta do arcebispo de Canterbury ao chegar ao aeroporto: existem bordéis nos bairros do este de Manhattan?

De facto, foi a primeira pergunta que tinha feito ao chegar ao aeroporto. Estava, inclusivamente, gravada. Qualquer um podia comprová-lo. Dizer a verdade supunha uma mentira flagrante.
Outra forma de enganar é dizer meias-verdades. A publicidade está cheia de exemplos verbais e icónicos. Mostram-nos uns brinquedos que parecem de tamanho natural quando a sua verdadeira dimensão é a miniatura, mostram-nos um movimento que só existe na mente do fabricante ou do publicista, confeccionam-se slogans carregados de ambiguidades e duplo sentido ...

Os números mostram ser uma via magnífica para ensombrar o verdadeiro significado dos factos. Tornou-se um clássico a gestão das estatísticas como verdade manipulada. Se um come um frango e o outro não come nada, a estatística dir-nos-á que cada um comeu meio frango. Se um tem dois milhões e o outro não tem nem um tostão, a média aritmética demonstrará que cada um tem um milhão.
As verdades inquestionáveis das estatísticas estão muito longe de reflectir a verdadeira realidade das coisas. O seu significado autêntico. Os números, até mesmo os números, mentem. Uma organização sueca perguntou ao computador onde deveria colocar um sanatório
para pessoas mais velhas. O computador respondeu em Soria ... porque nos últimos anos não tinha morrido ali nenhum sueco.

A armadilha dos números é muito perigosa. Dizer que todos os meninos e meninas do país já estão escolarizados ou que há muitos milhares de estudantes na Universidade não nos leva a considerar o que é que aconteceu com os que já estão dentro das aulas. O que acontece à qualidade se só nos preocuparmos com o facto de ser¬mos muitos? A grandiloquência dos números conduziu-nos, uma vez mais, ao engano.

A artificialidade e a suplantação adulteram a realidade. Havia uma rosa tão bonita no campo que parecia de plástico. Num concurso de imitadores de Charlot, celebrado em Liverpool, apresentou-se, incógnito, Charles Chaplin e obteve o segundo prémio.
Outra forma de esbater a verdade é utilizar uma linguagem retórica que a camufla e esconde. As máscaras com que vestimos a verdade (umas vezes por interesse, outras por compaixão, outras por pudor, outras por ignorância .. .) são infinitas. Avanço elástico para a retaguarda, diziam os alemães, para disfarçar, com a palavra, um re¬trocesso, uma fuga.

Quem pode ter interesse em mentir? Uma parte da falsificação da realidade provém da dificuldade em expressar, fielmente, a realidade, uma realidade sempre complexa que nunca tem fronteiras e que apresenta vertentes obscuras, de difícil interpretação. Outra parte provém do jogo de interesses dos que querem vender ou mandar ou dominar ou controlar ou manter-se no poder. Com boa ou má intenção, oferecem, aos demais, uma versão da realidade distorcida pela própria visão ou pelo desejo de conseguir adesões, votos ou compras. O exercício da persuasão não é garantia do respeito da ética.

Há que atribuir parte dos enganos à má vontade de quem se quer tornar rico ou poderoso. Outra parte, há que atribuí-la à estupi¬dez e à ingenuidade de quem se deixa enganar. Um vendedor sagaz vendeu duas máquinas de ordenhar a um granjeiro que só tinha uma vaca e, além disso, ajudou-o a financiar o contrato, aceitando a vaca como pagamento por conta das duas máquinas. O vendedor era, sem dúvida, hábil. Poderíamos, também, admitir alguma sus¬peita sobre a estupidez do granjeiro.

Miguel Santos Guerra. No coração da escola.

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