terça-feira, 20 de março de 2012

DIAGNÓSTICO DO ENSINO SECUNDÁRIO _ Necessidade de um paradigma alternativo


Por sua vez, o modelo pedagógico (e organizacional) “apesar das sucessivas reformas” (Barroso: 1998:9), manteve inalterados os traços essenciais da sua gramática nunca tocando o núcleo duro da sala de aula. Daí a manutenção do ensino de classe, com a intrínseca pedagogia coletiva do ‘ensinar a muitos como se fosse um só’, a divisão e estratificação dos saberes em disciplinas, com escassa articulação horizontal, a impessoalidade da relação pedagógica, o predomínio da lição e do método expositivo, a uniformização de dar o mesmo a todos no mesmo tempo, a estandartização do modelo temporal, a autoridade fundada na posição hierárquica, a avaliação descontínua e burocrática que elege o exame como referente inspirador e mecanismo de sobredeterminação das práticas pedagógicas e dos ritmos e conteúdos de vida dos estudantes.
Ora, a manutenção desta gramática revela-se particularmente ineficaz, dada a massificação das frequências escolares e as profundas alterações nos modos de acesso à informação.
Um outro fenómeno que afeta a organização e o funcionamento do ensino secundário ( e de todo o sistema educativo) dá pelo nome de credencialismo. A explosão das frequências escolares desvalorizou socialmente os diplomas dos níveis básicos de escolaridade. Dada esta desvalorização, gerou-se uma procura de níveis mais elevados de educação, entendida, fundamentalmente, como sinónimo de posse de títulos académicos, sendo geralmente irrelevante o conteúdo do currículo. Prolonga-se assim a escolarização, quer por efeito da procura, quer por efeito da oferta, legitimada pela crença no valor económico e social da educação e pela preocupação do controlo social . Nesta perspetiva, a missão central da escola (e designadamente do ensino secundário) não será qualificar as pessoas para a vida cívica, social e profissional, mas principalmente selecionar aqueles que a cultura escolar considera “melhores”, através dos procedimentos meritocráticos e fazer crer na naturalidade das desigualdades no usufruto dos bens educacionais.
Esta ordem (esta desordem) tende a inflacionar as qualificações para um mesmo tipo de trabalho, valoriza fundamentalmente o ensino geral geral/liceal que tem dado provas de ser o melhor dispositivo de seleção e um autêntico ensino ‘especializado’, reforça o individualismo e a competição, privilegia os valores formais sobre os expressivos, tende a eleger a avaliação sumativa externa como principal referencial do sistema de ensino, desvaloriza os saberes e os saber fazer dos não escolarizados, aumenta o fosso e a tensão entre gerações, resfria severamente as aspirações de alguns grupos sociais, provocando o consequente desencanto, aumenta consideravelmente as despesas pública e privada sem sejam sinónimas de investimento e de democratização de oportunidades.
Na tentativa de caracterizar a crise de paradigma do ES será ainda importante determo-nos ainda no quadro de valores reinantes, que serão também e simultaneamente causa e efeito da política educativa que enforma a ação coletiva e individual.
Por efeito conjugado de um vasto e complexo conjunto de fatores, fomos sendo levados a privilegiar cada vez mais a materialidade da vida, o consumo de bens, a competição como princípio regulador da vida económica e social, a ostentação, a servidão como táctica de vida e a desvalorizar e a esquecer a dimensão espiritual, criativa, transformadora, cooperativa e solidária. Como consequência desta ordem cultural, é cada vez maior a ameaça (e a prática) da precariedade dos vínculos laborais (exigida e legitimada pelo lucro e pela inevitabilidade da flexibilização do trabalho), da desfiliação familiar e social, da marginalização e exclusão sociais o que gera graves problemas de natureza pessoal e social.
Daqui decorre a urgência de “uma política emancipatória” que precisa de estar ligada “à política da vida ou a uma política de auto-realização”, que nos liberte das desigualdades crescentes e das velhas e novas servidões, como sustenta o sociólogo Anthony Giddens (1996:110-111), ou de “uma política de civilização” enunciada por Edgar Morin (1997: 151 ss) baseada em quatro pilares: o primeiro conjuga-se à volta do verbo “solidarizar”, num esforço de luta contra a atomização e a compartimentação, pois é cada vez mais generalizado o sentimento de que “há uma necessidade de solidariedade concreta e vivida, de pessoa a pessoa, de grupo a pessoa, de pessoa a grupos” (ib.: 151) e a convicção de que “uma sociedade só pode avançar em complexidade se progredir em solidariedade” (ib.: 152); o segundo afirma a necessidade de “revitalizar”, de refundar a “qualidade de vida”, lutando contra a anonimização, a tecno-burocratização, o desraízamento (cf. ib.: 153); o terceiro pilar é o da convivência, pois ninguém pode ser sozinho e o quarto é o da “moralização”que induziria à luta contra a irresponsabilidade e o egocentrismo (cf. ib.: 151).

Passando ao campo da organização do trabalho importa considerar que o emprego e o trabalho, que desempenhavam importantes papéis identitários, de inclusão profissional e de segurança social, tendem a transformar-se em fontes permanentes de insegurança, desqualificação, incerteza e angústia. Acresce ainda que a estrutura das oportunidades ocupacionais é reduzida face às qualificações dos muitos milhares de jovens que procuram um primeiro emprego, o que é efeito e causa da manutenção de uma iniciativa empresarial maioritariamente desqualificada (cf. Rodrigues, 1997) que parece fundar a estratégia competitiva nos baixos custo da mão de obra, estando este fenómeno a contribuir para reforçar a deceção pessoal dos candidatos ao 1º emprego (cf. Matias Alves, 1998 b).
Ora, é também neste cenário – que aliás é mais complexo dada a heterogeneidade de culturas e práticas organizacionais ainda muito inspiradas em modelos tayloristas – que têm de ser procuradas algumas das raízes da crise do ensino secundário, já que os futuros profissionais estão fortemente indeterminados e não desempenham o papel de atração e legitimação do investimento escolar.
Em síntese, a crise de sentido, finalidades e funções deve-se aos efeitos perversos da estrutura, ao anacronismo do modelo escolar e do modelo pedagógico, ao credencialismo, à hierarquia dos valores, à incapacidade da família assegurar a socialização primária e às ruturas introduzidas nos modos de produção e organização do trabalho. A conjugação de todos estes fatores poderá explicar a crise de paradigma do ensino secundário e a continuada procura de um novo paradigma educacional. As mudanças introduzidas neste nível de ensino, designadamente em 1983 e principalmente em 1989, procuraram resolver alguns problemas de estrutura e de organização, mas, como vimos, produziram também efeitos indesejados, o que leva a sustentar que só um conjunto de “mudanças de raiz, estrutura e funções” (Garrido: 1996) lhe poderá alterar os processos e os resultados. Na secção seguinte, procuraremos enunciar um desejável paradigma alternativo para a educação secundária.
José Matias Alves

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