quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

LEITURA E SILÊNCIO


Santo Agostinho, visitando Santo Ambrósio, na altura bispo de Milão, admirava-se por o encontrar sempre a ler silenciosamente e nunca de outra maneira: «Os seus olhos percorriam as páginas, e a mente penetrava o con-ceito, enquanto a voz e a língua repousavam» [Confissões, VI, 3, 3].

Agosti¬nho não compreendia a razão deste silêncio: para evitar ter de explicar a um auditor as passagens difíceis, para poupar a voz maltratada pelas prédi¬cas? É que, desde a Antiguidade, a leitura não se concebia senão em voz alta, em público, mas também em privado, quer fosse um escravo a ler, quer o próprio. A leitura silenciosa difundiu-se nos mosteiros, por volta do século VI, para fazer reinar o silêncio e respeitar o repouso dos outros à hora da sesta, que era também a hora da leitura pessoal.

Assim, S. Bene¬dito recomenda na sua regra: «Se alguém quiser, eventualmente, ler para si, que leia de modo a não incomodar ninguém» [Regula, XLVIII]. O nosso modo corrente de leitura tem portanto origem nas primeiras comunidades monásticas, e a norma inverteu-se desde a Antiguidade: então em voz alta; em voz baixa - ou sem voz? - hoje. Subsiste na língua a marca dessa inversão, nessa curiosa oposição voz alta / voz baixa para designar a da presença e ausência da voz. Como se a voz baixa fosse outra coisa além da ausência de voz, e ler silenciosamente fosse diferente de bai¬xar a voz. Como se a leitura devesse necessariamente fazer-se acompanhar pela voz ou, pelo menos, pelo movimento dos lábios e da língua. Donde, finalmente, essa estranha fórmula da pronúncia mental a que se entrega aquele que não mexe nem a língua nem os lábios, e que representa o ideal da leitura adulta que também não segue com o dedo.
Desde a Antiguidade, da voz alta à voz baixa e à extinção da voz, foi uma espécie de desencarnação da leitura que se operou, uma redução da parte do corpo, uma ocultação do acto da leitura, do gesto: imóvel, silen¬ciosa, solitária, já não tem existência carnal, é imediatamente espiritual. Ao contrário da cabeça de leitura mecânica que só afecta o plano da expressão, curto-circuita e, idealmente, vai imediatamente ao plano do conteúdo, ou seja, do sentido. Trata-se de uma leitura pura, imaterial, funcional. Tal é o modelo cristão da leitura, sem fruição, uma leitura que não passa pelo corpo; do livro ao espírito, pela transparência do olhar, uma leitura limpa, sem contacto.
Esta neutralização da leitura - a eliminação da voz e do corpo, o curto-circuito do significante -, S. Benedito apresentava-a como um sim¬ples artificio, uma imposição da vida em comum; não encarava diferença funcional entre a leitura silenciosa e a leitura indiscreta. Mas não foi pre¬ciso muito tempo para que o apagamento do corpo na leitura fosse raciona¬lizado. A partir do século VII, Isidoro de Sevilha, nos seus Sententiarum libri tres, tenta mostrar que a lectio tacita favorece a inteligência do texto, ou seja, o acesso imediato ao sentido, ao significado, sem se perder, sem se comprometer no significante: «Aos sentidos é mais grata uma leitura silen¬ciosa. O intelecto está mais receptivo se a voz de quem lê se cala e a língua se move em silêncio; se, pelo contrário, se ler em voz alta, o corpo cansa-se e a voz enfraquece» [111, 14, 9, in Migne, Patrologia latina, LXXXIII, 689].


LEITURA
Roland Barthes e Antoine Compagnon, in Enciclopédia EINAUDI, Lisboa, INCM, Vol. 11, pp. 184-206

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