As Crianças Selvagens
Trabalho criativo de Célia Pereira e Mª. Antónia Dias
No âmbito da disciplina de Psicologia B-12 R da Escola Secundária de Miraflores – Nov. 2007
“Será preciso admitir que os homens não são homens fora do ambiente social, visto que aquilo que consideramos ser próprio deles, como o riso ou o sorriso, jamais ilumina o rosto das crianças isoladas.”
Lucien Malson, "Les Enfants Sauvages"
Aprendemos na disciplina de Psicologia que os factores do meio que conferem ao indivíduo características humanas são: a cultura; os padrões de cultura; a aculturação e a socialização. Assim, neste trabalho teremos como pano de fundo esta conceptualização estudada na cadeira.
As crianças selvagens são crianças que cresceram com contacto humano mínimo, ou mesmo nenhum. Podem ter sido criadas por animais (frequentemente lobos) ou, de alguma maneira, terem sobrevivido sozinhas. Normalmente, são perdidas, roubadas ou abandonadas na infância e, depois, anos mais tarde, descobertas, capturadas e recolhidas entre os humanos.
Os casos que se conhecem de crianças selvagens revestem-se de grande interesse científico. Elas constituem uma espécie de grau zero do desenvolvimento humano, ensinam-nos o que seríamos sem os outros, mostram de forma abrupta a fragilidade da nossa animalidade, revelam a raiz precária da nossa vida humana.
Em termos de linguagem, as crianças selvagens só conhecem a mímica e os sons animais, especialmente os das suas famílias de acolhimento. A sua capacidade para aprender uma língua no seu regresso à sociedade humana é muito variada. Algumas nunca aprendem a falar, outras aprendem algumas palavras, outras ainda aprenderam a falar correctamente o que provavelmente indicia que tinham aprendido a falar antes do isolamento.
Em termos de comportamento, as crianças selvagens exibem o comportamento social das suas famílias adoptivas. Não gostam em geral de usar roupa e alimentam-se, bebem e comem tal como um animal o faria. A maioria das crianças selvagens não gosta da companhia humana e percorrem longas distâncias para a evitar. Algumas crianças selvagens não mostram interesse algum noutras crianças da sua idade nem nos jogos que estas jogam. Na medida em que não gostam da companhia humana, procuram a companhia dos animais, particularmente dos animais semelhantes à espécie dos seus pais adoptivos. Ao mesmo tempo, também os animais reconhecem estas crianças, aproximando-se delas como não o fariam em relação a outros humanos.
As crianças selvagens não se riem ou choram, apesar de eventualmente poderem desenvolver alguma ligação afectiva. Manifestam pouco ou nenhum controlo emocional e, muitas vezes, têm ataques de raiva podendo então exibir uma força particular e um comportamento claramente selvagem. Algumas destas crianças têm ataques de ferocidade ocasionais, mordendo ou arranhando outros ou até eles mesmo. Até hoje foram encontradas diversas crianças selvagens, na maioria criadas por lobos mas também por muitos outros animais. Por exemplo, as irmãs Amala e Kamala de Midnapore, Isabel, a menina que vivia no galinheiro, mas o caso mais célebre é o de Victor de Aveyron, onde François Truffaut se inspirou para realizar um filme belíssimo.
VICTOR DE AVEYRON
Em Setembro de 1799 uma criança do sexo masculino de cerca de 12 anos de idade, foi encontrado perto da floresta de Aveyron, sul da França. Estava sozinha, sem roupa, não falava uma palavra. Aparentemente fora abandonado pelos pais e cresceu sozinha na floresta. A criança, a quem deram o nome de Victor, foi levada para Paris, onde ficou aos cuidados do médico Jean-Marc-Gaspar Itard.
Embora se pense que o menino selvagem tenha sido abandonado no bosque quando tinha quatro ou cinco anos, altura em que já deveria dispor de algumas ideias e palavras, em consequência do começo da sua educação, tudo isso se lhe apagou da memória devido a cerca de sete anos de isolamento. Quando foi capturado, andava como um quadrúpede, tinha hábitos anti-sociais, órgãos pouco flexíveis e a sensibilidade embotada, não falava, não se interessava por nada e a sua face não mostrava qualquer tipo de sensibilidade. Toda a sua existência se resumia a uma vida puramente animal.
Assim, o seu isolamento passado condicionou a sua aprendizagem futura que, além do mais, deveria ter sido realizada durante a sua infância (época em que o seu cérebro apresentaria mais plasticidade, existindo uma facilidade de aprendizagem, socialização e interiorização dos comportamentos característicos da sua cultura). Desta forma, o menino selvagem não só tinha que lutar contra o seu passado como contra a idade avançada para uma aprendizagem, muito provavelmente, sua desconhecida, sendo esta a razão porque, segundo Itard, “para ser julgado racionalmente, (o menino selvagem de Averyon) só pode ser comparado a ele próprio”.
O Homem na ocasião do nascimento é o ser que se mostra mais incapaz, condição necessária para os seus progressos posteriores, e a ideia de instintos que se desenvolvem por si só não corresponde à realidade humana. Nasce inacabado e depende de uma sociedade, de uma cultura. A superioridade moral, que muitos consideram ser natural nos seres humanos, não é mais do que um resultado da civilização, que contribui para a sua formação. Existe então, uma força imitativa destinada não só à educação dos órgãos como à aprendizagem da palavra, que é muito activa nos primeiros anos de vida, mas enfraquece rapidamente com o avançar da idade, com o isolamento e com todas as outras causas relacionadas com a sensibilidade nervosa.
Com a tentativa de integração do menino selvagem na sociedade, este, que anteriormente não estava “preso” por normas e deveres morais, perdeu o poder de escolher, pois, por sua vontade, voltaria para o bosque, razão pela qual tentou fugir inicialmente. Por outro lado, conseguiu, pouco a pouco, impor-se face à Natureza, ao instinto, adquirindo cultura e atingindo outra forma de liberdade, que concorre para a formação do Homem.
Ainda que a liberdade seja um factor que está subjacente às acções especificamente humanas, podemos concluir, tendo em conta todo este caso, que existem de facto condicionantes da acção humana. Em primeiro lugar, o menino selvagem, não obstante viver numa floresta, não tinha as mesmas capacidades físicas de outros animais, ou seja, os factores biológicos também afectaram as suas acções enquanto selvagem. Em segundo lugar, surgem os factores intelectuais, pelo facto do menino não ter competências nesse sentido, o que dificultou as suas acções na sua vivência em sociedade. Por exemplo, quando o Dr. Itard tentou transmitir algum conhecimento no âmbito das letras, aconteceram, por vezes, ataques de fúria, pelo facto destas serem muito abstractas.
Aprendeu também a desenvolver afectividade, o que foi considerado um grande progresso. À medida que esta afectividade se foi desenvolvendo entre o menino e o Dr. Itard ou a Mme. Guérin, a aprendizagem foi-se tornando mais fácil (note-se que os factores psicológicos são bastante influenciáveis). Por último, como já foi referido, os factores socioculturais também influenciam as nossas acções pois, ao estarmos inseridos numa sociedade, as nossas acções e comportamentos são influenciados por ela, como se verificou com a socialização do menino selvagem, que teve de se sujeitar a regras e a deveres morais.
Assim, as investigações e os registos sobre crianças selvagens, evidenciam que as interacções precoces com outros seres humanos são condição indispensável para o desenvolvimento das competências linguísticas, afectivas, cognitivas, sociais e culturais, o homem é um ser eminentemente social. O Homem deve à cultura a capacidade de ultrapassar os seus instintos, tendo, desta forma, o poder de optar, escolher qual o caminho que considera melhor, segundo os valores em que se apoia, depois de analisar, racionalmente, a realidade. Integração no meio cultural, que varia em função da sociedade a que pertence. O que nos torna reconhecidamente humanos depende de muito mais do que a nossa herança genética e biológica: é fundamental ter em conta as dimensões sociais e culturais para que possamos compreender os seres humanos e a forma como se comportam. Tornamo-nos humanos através da aprendizagem de formas partilhadas e reconhecíveis de ser e de nos comportarmos.
Bibliografia consultada:
Lucien Malson. Les enfants sauvages.
José Carlos Rocha e Gilberto da Silva. O menino selvagem e as invariantes do humano. Portes, a sua revista virtual.
Ana Sofia de Oliveira Marques da Silva. Crianças selvagens.
terça-feira, 6 de novembro de 2007
As Crianças Selvagens
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Obrigada pela visita
Abraço
Gostei de conhecer " azul indigo "
vou passando ...
Um trabalho com rigor e correcção científicos. Ficamos muito gratos pelo contributo dado ao nosso blog. Um estímulo para que mais colegas apresentem novos trabalhos, notícias e comentários. Prometemos publicar todos aqueles que tiverem qualidade.
Ana Paula e Roque Antunes
P.S. - A referência ao filme pareceu-me muito interessante, na medida em que se trata de uma outra forma de linguagem, pela qual o tema pode ser também abordado.
Ana Paula
Enviar um comentário