terça-feira, 5 de julho de 2011

ORAÇÃO DO LIVRO


Dá-nos, Senhor, o nosso livro de cada dia, temos sede de justiça: é o nosso vinho; morremos de fome de amor: é o nosso pão.
Dá-nos lábios puros para o ler, mãos limpas para o tocar, pureza para o merecer. Foi feito também para que os homens maus o leiam, porque ele é água límpida na qual se purificam as almas sujas, bálsamo fino para todas as dores.
Dá-nos o livro que todos possam ler, que seja para todos como o sol e todos o compreendam como a água. Que nos alumie neste comprido caminho que se chama vida: queremos luz; que nos levante desta terra em que nos arrastamos: queremos asas.
Queremo-lo suave de coração, cheio de cantos como uma árvore, e que repouse nos nossos joelhos como uma criança. Não importa que seja humilde, desde que se ofereça às nossas mãos como um fruto: ou que seja de aparência débil, desde que encha um ninho.
Construir-lhe-emos uma casa, para que nela habite com decência; defendê-lo-emos das mãos pérfidas que o espiam, para que sirva a todos; levantá-lo-emos do chão quando cair, para que outros o não ultrajem; vesti-lo-emos, se estiver nu, com a seda da nossa devoção contida. Nele vivem almas que tiveram a mesma dor do nosso pranto, sofreram na carne viva outras ideias, desesperaram-se por outros sonhos; mas ele não permanecerá quieto na sua casa, pois foi feito com a inquietação, com a dor e o amor de cada dia, e por isso, quando a noite for mais escura e o caminho mais pavoroso de perigos, aparecerá para oferecer pão e vinho aos que têm sede de justiça, fome de amor.
Os meninos ricos lê-lo-ão e os pobres amá-lo-ão, porque os homens fizeram-no para todos os homens. Irá, de mão em mão, como a boa semente de campo em campo, e será suave como o ninho; delicioso, inteiro, como o fruto.
Quando todos o tiverem lido, apagar-se-á a horrível chama da guerra, o rico não explorará o pobre, e haverá riso e boas acções no mundo, cantigas no trabalho, e os homens de boa vontade não mais se odiarão. Não haverá crianças descalças, crianças que levantarão as mãos não para pedir mas para dar. Todos acreditarão num mesmo Deus; nem a arte, nem a ciência, nem a religião serão privilégio de alguns, e a vida terá então o seu mais alto sentido.
Dá-nos, Senhor, o livro precedido de chamas como o profeta que baixou dos céus. Ele não é o barco de guerra que traz gente armada; este barco traz livros para as crianças ou para os sábios e para os que têm fome de conhecimento, sede de misericórdia.
Dá-nos, senhor, o livro do Norte e do Sul, o que está escrito com espírito, o que conhece a amargura mais íntima do coração. Os homens bons – que são mais do que os homens maus – saem a recebê-lo de braços abertos. Dá-nos, senhor, o livro antena, aquele em que repercute o grito dos outros homens, o que traz paisagens longínquas. E deixa, Senhor, que ele nos alumie neste comprido caminho da vida e nos seja límpido como a torrente, generoso como o fruto, suave como o ninho; e só nos caia das mãos quando a morte chegar.

Rafael Heliodoro Valle, in GAMA, Sebastião da, Diário, Lisboa, Presença, 2011, pp. 343 e 344

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