terça-feira, 26 de julho de 2011

Razões do nosso atraso educativo


Comecemos por dar uma vista de olhos pelas qualificações das nossas comunidades emigrantes, pois estas são um reflexo não só das nossas opções do passado, mas também do valor que a cultura nacional atribui à educação.

Talvez não seja muito surpreendente afirmar que as qualificações dos nossos emigrantes em várias partes do mundo são bastante sofríveis. Assim, um estudo sobre as diversas comunidades étnicas em Toronto, Canadá, revelou que, nos meados dos anos 1990, a comunidade portuguesa tinha o menor grau de instrução dos emigrantes de todas as comunidades residentes no território canadiano. Mais concretamente, em 1996, cerca de metade dos imigrantes portugueses não tinha mais do que a instrução primária e cerca de 70% não tinha concluído o ensino secundário.

Porém, o que poderá ser mais surpreendente é que estes dados incluem não só os imigrantes portugueses, mas também as segundas e terceiras gerações de luso-descendentes. Ou seja, por um motivo qualquer, o valor dado à educação pelos nossos emigrantes no Canadá é, em média, muito reduzido. O mesmo se passa em outras partes do mundo.

Assim, no estado de Massachusetts, um dos mais afluentes dos Estados Unidos e destino de uma apreciável comunidade portuguesa, mais de 45% dos emigrantes nacionais nunca tinham frequentado o ensino secundário, somente um terço dos portugueses emigrados tinham completado o ensino liceal, e apenas 6% tinham acabado um curso universitário, percentagens muito abaixo da média desse estado americano. Igualmente, no Luxemburgo, os portugueses são das comunidades de imigrantes com menor grau de educação.

O mesmo se passa na França e na Bélgica, e o mesmo acontecerá em outros países. Sinceramente, não sei como explicar adequadamente porque é que nós damos um valor tão reduzido à Educação.

Provavelmente, uma explicação abrangente sobre este fenómeno incluirá factores económicos, sociais e culturais. É claro que existem condicionantes históricas, tais como o baixíssimo investimento em Educação feito pelo Estado Novo e pelos regimes anteriores. Porém, nada poderá explicar por que é que as segundas e terceiras gerações dos nossos emigrantes continuem a atribuir um valor tão reduzido à Educação.
Fonte: Álvaro Santos Pereira (2011). Portugal na Hora da Verdade. Lisboa: Gradiva

domingo, 24 de julho de 2011

Pedagogia do Projecto Fénix



1. Acreditar (sem a crença na educabilidade do ser humano; sem a crença de que todos podem aprender; sem a crença de que podemos fazer melhor não há mudanças positivas…). E é importante referir, que nos encontros com muitas centenas de professores, esta disposição esteve quase sempre presente. Mesmo quando as dificuldades eram evidentes, foi possível sustentar que sem esta força interior o melhor não seria possível.

2. Construir (o futuro não está todo escrito; somos chamados a construí-lo e a escrever algumas frases da história a vir…; cada aluno e cada professor são mundos singulares que importa descobrir e potenciar). Esta foi uma das constantes observadas na grande maioria dos contextos. A afirmação de que os professores podem ser autores, podem ser criadores de soluções à medida, podem fazer a diferença no enfrentar de problemas difíceis. No relato que transcrevemos infra (cf. Caixa ) é bem evidente esta capacidade de imaginar novos caminhos para a acção didáctica.

3. Exigir resultados e exigir meios (somos obrigados a apresentar resultados que contratualizamos; mas é também obrigatório a disponibilização de meios…; porque podemos ter de fazer omeletes com meios ovos, mas tem sempre de haver ovos). Esta exigência de meios é tanto mais legítima quanto mais evidência de resultados (também procedimentais) conseguirmos evidenciar. E é nesta tensão de auto-exigência e hetero-exigência que a nossa educação tem condições de evoluir.

4. Definir objectivos SMART (isto é, específicos, mensuráveis, atingíveis, realistas, temporizáveis, na esfera organizacional e pedagógica; porque estes objectivos podem guiar, estruturar, animar, sustentar a acção; porque a deriva, a falta de ambição gera a perda de oportunidades de aprender). Sobretudo no campo didáctico (mas também organizacional) esta prática é particularmente recomendável. Porque ensinar requer estruturação, clareza, (auto)orientação, rigor.

5. Reconhecer e valorizar as pequenas acções, gestos, vitórias (porque muitas vezes os entraves situam-se ao nível do auto-conceito, da auto-estima…; e se não houver este trabalho seminal nada de relevante e prometaico acontece). Esta prática foi particularmente recorrente, face à necessidade de cativar alunos que tinham aprendido o desânimo e de lhes demonstrar de que eram capazes de aprender e de evoluir.

6. Reconhecer a importância do obstáculo e dos desafios para a gestão das aprendizagens e colocando-os nas zonas de desenvolvimento proximal dos alunos (porque aprender é ultrapassar obstáculos e vencer desafios…; ninguém se entrega a um trabalho que não seja estimulante e desafiante; daí ser central criar oportunidades de aprender que estimulem a acção, a reflexão, a curiosidade, a descoberta…).

7. Olhar e praticar a avaliação como uma entrada na renovação do modelo didáctico (porque a avaliação tem um largo poder na regulação do trabalho e na implicação dos alunos…). Em numerosos contactos com professores podemos recolher evidências empíricas deste facto. Foi através da alteração das regras do jogo avaliativo que foi possível outra postura e outra implicação dos alunos. Que foi possível que os alunos percebessem que tinham algum controlo sobre a produção das classificações e que, por via disso, adoptassem uma postura de muito mais trabalho que naturalmente tinha efeitos nos resultados escolares .

8. Pensar e gerir o tempo de forma flexível e exigente. No caso específico dos ninhos, a permanência não pode ser um destino, mas uma passagem, uma oportunidade para ganhar o alento (e a arte) do voo. Esta questão foi particularmente sensível em diversas circunstâncias. Os alunos não queriam sair, sentiam-se bem; os professores receavam que a mudança significasse regressão nas aprendizagens. Não havendo uma regra universal, deve afirmar-se que estar no ninho é um tempo para recuperar e acelerar aprendizagens que não se realizaram noutras oportunidades. Por isso, o trabalho nos ninhos não pode ser o mesmo que na turma base; não pode centrar-se na exposição do professor para um grupo de 5 ou 7 alunos. Terá de ser um trabalho individual intenso e exigente.

9. Construir o triângulo dos actores centrais: alunos, professores, pais (numa lógica de partilha de responsabilidades e de estabelecimento de novos compromissos concretos para a acção). O projecto Fénix teve sempre se equacionar a construção deste triângulo. Porque o professor não pode aprender em vez do aluno; porque o aluno (sobretudo o aluno fragilizado) dificilmente aprende sozinho; porque o contexto familiar, no mínimo, não pode destruir o que a escola tenta construir; porque o professor desta compreensão e deste suporte.

10. Ligar o saber ao sabor (porque o saber desconectado das pessoas e da vida tende a ser desprezado, desvalorizado e inútil). Como sustenta Eduardo Prado Coelho:

“Sabemos que, em latim, havia duas formas concorrentes: o sapere e o scrire. De scire veio toda a nossa ciência. Mas scire corresponde à ideia de um conhecimento que apreende o objecto na medida em que o separa, o recorta, o divide, em relação às restantes coisas. É um gesto de discernir ou de distinguir. O sapere aproxima-se das coisas a partir do que elas têm de único: o sabor, o gosto. Sucede que sapere se foi sobrepondo a scire e deu o saber de que hoje dispomos, mas um saber que recolheu as características mais puritanas da tradição científica: e fica um saber que não sabe a nada”.

Esta necessidade de religar os conhecimentos é de uma grande relevância pedagógica e que vai sendo ensaiada e praticada.

11. Instituir uma cultura de exigência e responsabilidade (como condição sine qua non de saída da mediocridade…).

12. Substituir o aborrecimento de viver pela alegria de pensar (Bachelard), porque é a acção reflectida que nos faz sair das rotinas paralisantes, dos argumentos dos bodes expiatórios, que nos faz aprender, que nos faz descobrir novos horizontes, nos faz encontrar as chaves da aprendizagem, sobretudo daqueles que o não querem.


13. Reencontrar a alegria de ensinar neste tempo disfórico é outro propósito do ser hoje professor. Porque nós não podemos enterrar os nossos sonhos, não podemos estar sempre a beber o cálice da amargura. Precisamos da alegria que se encontra no rosto dos nossos alunos quando descobrem enfim o sentido e a gratificação de aprender e no rosto dos nossos colegas quando nos redescobrimos irmãos do mesmo ofício.

Estes foram alguns verbos que foram sendo conjugados num programa de acção que em larga medida já existe nos territórios Fénix. Mas que é sempre preciso reconhecer, estimular e valorizar. Porque os resultados educativos exigem visão, tempo, determinação, consistência, recursos e cooperação. Aqui os deixo acesos, como testemunho e felicitação.

Alves, JM (2011). in Projecto Fénix - Relatos que contam o sucesso. Porto: UCP

quinta-feira, 21 de julho de 2011

AS LIÇÕES DOS MESTRES


As "lições dos mestres" poderão, deverão sobreviver aos ataques?

Creio que sim, ainda que seja sob formas imprevisíveis. Creio que é necessário que sobrevivam. A libido sciendi, a sede de conhecimento, a necessidade profunda de compreender estão inscritas no que de melhor têm os homens e as mulheres. Tal como a vocação do professor. Não há ofício mais privilegiado. Despertar noutro ser humano poderes e sonhos além dos seus; induzir nos outros um amor por aquilo que amamos; fazer do seu presente interior o seu futuro: eis uma tripla aventura como nenhuma outra. À medida que cresce, a família dos nossos antigos alunos é como uma ramificação,a folhagem de um tronco que envelhece (tenho alunos nos cinco continentes). É uma satisfação incomparável ser o servidor, o mensageiro do essencial - sabendo perfeitamente como são raros os criadores ou descobridores de primeira água. (...) ensinar é ser cúmplice de possibilidades transcendentes. Uma vez desperta, essa crainça exasperante que se senta na última fila poderá escrever os versos ou conjecturar o teorema que ocuparão séculos. Uma sociedade, como a do lucro desenfreado, que não honre os seus professores, é uma sociedade defeituosa.

George Steiner (2005). A Lição dos Mestres. Lisboa. Gradiva

O MESTRE


O que é um mestre?
Antes de mais, é alguém que não tem discípulos.
Carece de interesse, pois não faz mais que repetir o que já há, a imagem de um mestre como aquele que orienta o caminho e as metas, que aponta a direcção e o leito a seguir, que transmite aos outros o seu saber e experiência acumulados, que dota de instrumentos.
Pode-se pensar que a obra do mestre enriquece com a sua herança as gerações sucessivas às quais a transmite. Isso não é só falso:: é também um absurdo lógico.
Há gente assim, mas tem outro nome, não o de mestre.
Um mestre desorienta, insatisfaz, empobrece.
Diante do mestre, o resultado a que cada um de nós chegou não basta.
O quanto sabemos é insuficiente, impreciso, aproximado.
Tudo quanto adquirimos exibe um suspeito brilho de quinquilharia diante do mestre.
O mestre é um dispositivo que faz surgir uma imediata desconfiança diante do obtido. Impele, numa contínua insatisfação, a ir mais longe, noutra direcção, d emaneira diferente. Um mestre não convoca e agrupa. Espalha.
Quanto mais a nossa experiência se move no estimulo centrífugo do mestre mas capazes somos de prescindir de modelos, regras, obediências, costumes.
Perdemos segurança. O mestre é aquele que nos tira, uma depois da outra, as provisões acumuladas. Ficamos sem nada nas mãos. Isso pode ser chamado pobreza, mas também liberdade.
O mestre torna livre. Põe-nos frente a um território no qual não há nenhum trilho traçado, de ilimitada extensão, e que devemos percorrer sós.

Josep Quetglas (1996). EASI. Porto:UCP

GRAMÁTICA DAS EMOÇÕES


Segundo António Damásio, a emoção desencadeada por determinado estímulo dá origem a "um programa de acções", diferentes conforme o tipo de emoção, que provocam alterações rosto, no corpo ou no sistema endócrino (estratégias activas). O corar de um rosto, a tensão muscular, o aumento do ritmo cardíaco, ou o aumento da secreção de determinada hormona são exemplos dessas alterações fisiológicas.

Contudo, falar da emoção apenas como um programa de acções é restrito demais, considera o especialista, sustentando que existem também as estratégias cognitivas, "certos estados mentais que fazem parte do programa completo de acções". Como exemplo, o neurobiologista referiu que "a tristeza obriga a certa estratégia cognitiva": num estado de tristeza, uma pessoa não pensa num jantar agradável e divertido, mas é capaz de pensar na morte.
"É sabido que é difícil uma atenção focalizada em momentos de extrema tristeza ou que durante emoções de medo pode haver uma capacidade de aprendizagem aumentada", disse. Mas a questão da emoção é ainda mais complexa, porque as emoções (esses programas de acções) são desencadeadas por determinados estímulos que não têm obrigatoriamente o mesmo efeito em pessoas diferentes.
Os estímulos podem ser objectos ou situações, actuais ou existentes na mente, e alguns são evolucionais e outros são aprendidos individualmente. "Situações que causem medo ou compaixão são muito antigas e são colocadas em nós pela evolução, estão nos genomas", por isso são evolucionais, explicou António Damásio.
"Mas se o estímulo que desencadeia emoções é uma determinada pessoa que nada tenha a ver com a História ou evolução, mas com aspectos de aprendizagem que tenham só a ver connosco", está-se perante um estímulo individual, acrescentou.

Três tipos de emoções
A propósito, o cientista referiu três tipos de emoções: as de fundo, que são mais vagas, como o entusiasmo ou o desencorajamento, as primárias, que são mais pontuais, como a tristeza, o medo, a raiva ou a alegria, e as sociais, que são um resultado sócio-cultural, como a compaixão, a vergonha ou o orgulho.
Passada a exposição da sua teoria sobre a emoção, António Damásio debruçou-se sobre o que são os sentimentos, explicando que são por um lado alterações do corpo que podem ser reais ou simuladas, e por outro estados alterados de recursos cognitivos.
"Nem todas as alterações que sentimos no corpo são necessariamente as que se estão a passar", pois é possível o cérebro simular essas alterações sem que elas realmente aconteçam.
Quanto aos "estados alterados de recursos cognitivos", António Damásio refere-se à percepção que a pessoa tem de que algo se modifica no seu espírito, na maneira de pensar ou na tendência para agir de determinada forma. No final da palestra, o investigador tratou de explicar "como é que sentimos uma emoção".

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Escola, Aluno ou Aprendizagem?


A escola centrada no aluno ou na aprendizagem
O primeiro dilema é: a escola centrada no aluno ou na aprendizagem? É um dilema muito importante, porque todos nós partilharemos a ideia de que a escola deve estar centrada no aluno. Mas vou defender aqui a escola centrada na aprendizagem.
No meu último livro, faço uma crítica ao que chamo de “transbordamento da escola”. Há hoje [na escola] um excesso de missões. A sociedade foi lançando para dentro da escola muitas tarefas – que foram aos poucos apropriadas pelos professores com grande generosidade, com grande voluntarismo –, o que tem levado em muitos casos a um excesso de dispersão, à dificuldade de definir prioridades, como se tudo fosse importante. Muitas das nossas escolas são instituições distraídas, dispersivas, incapazes de um foco, de definir estratégias claras. E quando se enuncia cada uma dessas missões ninguém ousa dizer que não são importantes. Mas a pergunta que se deve fazer é: a escola pode fazer tudo? É preciso combater esse “transbordamento”. Tudo é importante, desde que não se esqueça que a prioridade primeira dos docentes é a aprendizagem dos alunos.
A pedagogia tradicional era baseada nos conhecimentos e na transmissão dos conhecimentos. A grande ruptura provocada pela pedagogia moderna foi colocar os alunos no centro do sistema. Mas a pedagogia moderna precisa ser reinventada na sociedade contemporânea. Não se trata de centrar na escola nem nos conhecimentos, como advogava a pedagogia tradicional, nem nos alunos, como advogava a pedagogia moderna, mas, sim, na aprendizagem. É evidente que a aprendizagem implica alunos. A aprendizagem implica uma pessoa, um aluno concreto, implica o seu desenvolvimento, o seu bem-estar. Mas uma coisa é dizer que nosso objetivo está centrado no aluno e outra coisa na aprendizagem do aluno. E definirmos isso como nossa prioridade no trabalho dentro das escolas.
A aprendizagem necessita também dos conhecimentos. E os conhecimentos, é preciso reconhecer, durante algum tempo foram uma espécie de paradigma ausente de muitas práticas pedagógicas. A melhor expressão que define isso é “aprender a aprender”, a ideia de que se poderia aprender num vazio de conhecimentos. É preciso insistir na ideia de centrar o foco na aprendizagem e que essa aprendizagem implica em alunos e conhecimentos. Ela não se faz sem pessoas e uma referência às suas subjetividades, sem referências aos seus contextos sociais, suas sociabilidades. Mas ela também não se faz sem conhecimentos e sem a aprendizagem desses conhecimentos, sem o domínio das
ferramentas do saber que são essenciais para as sociedades do século XXI, que todos querem ver definidas como sociedades do conhecimento.
António Nóvoa

Google e Memorização


O “efeito Google” e a memorização da informação
Há quatro anos, Betsy Sparrow, psicóloga e professora assistente da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, estava a ver um filme a preto e branco, dos anos 40. Sabia que conhecia uma das actrizes, a cara era-lhe familiar, mas... não se lembrava do nome dela. Não perdeu muito tempo. Agarrou no smartphone, entrou na Internet e teve a resposta em segundos. "Como é que se fazia antigamente para memorizar coisas destas?", recorda-se de perguntar, em conversa com o marido, nessa mesma noite.
Algum tempo depois, decidiu estudar a questão, com dois colegas. A equipa acaba de publicar um artigo na revista Science que resulta de uma série de experiências com estudantes da Universidade de Harvard. Chama-se O Efeito Google na Memória: Consequências cognitivas de ter a informação na ponta dos dedos. Uma das experiências consistiu, no essencial, no seguinte: pediu-se a um grupo de estudantes que escrevessem no computador um conjunto de informações; antes de começarem, os investigadores disseram a metade dos alunos que o que iriam escrever ficaria guardado no computador; à outra metade foi dito que a informação se perderia. De seguida, pediu-se-lhes que reproduzissem as frases, de cabeça. Resultado: os que achavam que a informação tinha desaparecido revelaram, de longe, melhor memória, "como se os seus cérebros tivessem feito um backup". Os que acreditavam que poderiam consultar a informação, porque ela estava guardada, saíram-se pior.
Numa outra experiência, os estudantes tiveram que escrever perguntas e respostas, sendo a informação guardada em diferentes "pastas". No final, os alunos revelaram ser mais capazes de recordar as "pastas" onde podiam encontrar as respostas do que as respostas propriamente ditas.
Se dantes as pessoas confiavam nos livros, nos colegas e nos familiares para as ajudarem a encontrar determinadas informações - é um clássico, por exemplo, que os homens confiem que as mulheres não deixarão escapar uma data importante e que elas confiem nos maridos para se lembrar do nome de um amigo distante - hoje confiamos cada vez mais que a Net cumpre essa função. A Net tornou-se uma espécie de banco pessoal de memória.

terça-feira, 5 de julho de 2011

ORAÇÃO DO LIVRO


Dá-nos, Senhor, o nosso livro de cada dia, temos sede de justiça: é o nosso vinho; morremos de fome de amor: é o nosso pão.
Dá-nos lábios puros para o ler, mãos limpas para o tocar, pureza para o merecer. Foi feito também para que os homens maus o leiam, porque ele é água límpida na qual se purificam as almas sujas, bálsamo fino para todas as dores.
Dá-nos o livro que todos possam ler, que seja para todos como o sol e todos o compreendam como a água. Que nos alumie neste comprido caminho que se chama vida: queremos luz; que nos levante desta terra em que nos arrastamos: queremos asas.
Queremo-lo suave de coração, cheio de cantos como uma árvore, e que repouse nos nossos joelhos como uma criança. Não importa que seja humilde, desde que se ofereça às nossas mãos como um fruto: ou que seja de aparência débil, desde que encha um ninho.
Construir-lhe-emos uma casa, para que nela habite com decência; defendê-lo-emos das mãos pérfidas que o espiam, para que sirva a todos; levantá-lo-emos do chão quando cair, para que outros o não ultrajem; vesti-lo-emos, se estiver nu, com a seda da nossa devoção contida. Nele vivem almas que tiveram a mesma dor do nosso pranto, sofreram na carne viva outras ideias, desesperaram-se por outros sonhos; mas ele não permanecerá quieto na sua casa, pois foi feito com a inquietação, com a dor e o amor de cada dia, e por isso, quando a noite for mais escura e o caminho mais pavoroso de perigos, aparecerá para oferecer pão e vinho aos que têm sede de justiça, fome de amor.
Os meninos ricos lê-lo-ão e os pobres amá-lo-ão, porque os homens fizeram-no para todos os homens. Irá, de mão em mão, como a boa semente de campo em campo, e será suave como o ninho; delicioso, inteiro, como o fruto.
Quando todos o tiverem lido, apagar-se-á a horrível chama da guerra, o rico não explorará o pobre, e haverá riso e boas acções no mundo, cantigas no trabalho, e os homens de boa vontade não mais se odiarão. Não haverá crianças descalças, crianças que levantarão as mãos não para pedir mas para dar. Todos acreditarão num mesmo Deus; nem a arte, nem a ciência, nem a religião serão privilégio de alguns, e a vida terá então o seu mais alto sentido.
Dá-nos, Senhor, o livro precedido de chamas como o profeta que baixou dos céus. Ele não é o barco de guerra que traz gente armada; este barco traz livros para as crianças ou para os sábios e para os que têm fome de conhecimento, sede de misericórdia.
Dá-nos, senhor, o livro do Norte e do Sul, o que está escrito com espírito, o que conhece a amargura mais íntima do coração. Os homens bons – que são mais do que os homens maus – saem a recebê-lo de braços abertos. Dá-nos, senhor, o livro antena, aquele em que repercute o grito dos outros homens, o que traz paisagens longínquas. E deixa, Senhor, que ele nos alumie neste comprido caminho da vida e nos seja límpido como a torrente, generoso como o fruto, suave como o ninho; e só nos caia das mãos quando a morte chegar.

Rafael Heliodoro Valle, in GAMA, Sebastião da, Diário, Lisboa, Presença, 2011, pp. 343 e 344

INSTRUIR E EDUCAR


“Em primeiro lugar, eu acho que se deve fazer uma grande diferença entre instruir e educar. Instruir é um parente do verbo construir. Nós vamos dando, na medida em que podemos instruir alguém ou alguma coisa, nós vamos dando o tijolo com que ele vai fazer o seu próprio edifício à sua vontade. Instruímos. E também não é por acaso que a palavra aluno é um particípio passado de um verbo que se deixou de empregar e significa o alimentado. O aluno é aquele que nós alimentamos.

A origem da palavra alimentar e aluno é exactamente a mesma, não é? E o outro é instruir. Ao passo que educar já tem o elemento que significa conduzir. É parente dessa palavra. E até possivelmente o elemento de reduzir. De maneira que quando passamos do instruir para o educar, nós não estamos a dar tudo o que é necessário para ele construir o edifício à sua maneira, segundo o seu gosto, mas estamos sempre a ter o perigo de reduzir o que ele era para o habituar aos nossos costumes, para ele viver na nossa sociedade. Há outra maneira de fazer? Nenhuma outra. Estamos nesta sociedade que tem determinadas características. Evidentemente que o que temos que fazer é proceder de tal maneira que ele não fique um estranho dentro dessa sociedade. Só? Não, porque agora já estamos pensando que há mais coisas para além disso. Que há o tal ideal de depois de realizarmos um empreendimento deixar uma determinada profissão para sermos nós próprios. Que é por exemplo o que falta aos reformados. Porque é que os reformados morrem tão facilmente? Porque quando eles deixam de ser os trabalhadores de um determinado sector eles apenas têm para viver a recordação disso. E uma saudosa recordação. Porque cai sobre eles o tempo livre, que é a carga mais pesada que alguém pode ter na sua vida, e não lhes resta nenhuma ocupação, senão às vezes definharem molemente e melancolicamente num cafezinho, chupando um cigarrinho triste.”

Agostinho da Silva, entrevista da RTP, Conversas Vadias, entrevistado por Joaquim Letria.