sexta-feira, 17 de abril de 2009
Educação - dupla perspectiva
Ensinar é um acto de amor. Se as gerações mais velhas não transmitissem o seu conhecimento às gerações mais novas nós ainda estaríamos na condição dos homens pré-históricos. Ensinar é o processo pelo qual as gerações mais velhas transmitem às gerações mais novas, como herança, a caixa onde guardam os seus mapas e ferramentas. Assim as crianças não precisam começar da estaca zero. Ensinam-se os saberes para poupar àqueles que não sabem o tempo e o cansaço do pensamento: saber para não pensar. Não preciso pensar para riscar um fósforo. Os grandes sabem. As crianças não sabem. Os grandes ensinam. As crianças aprendem. Esse é o sentido etimológico da palavra “pedagogo”: aquele que conduz as crianças.
Educar é transmitir conhecimentos. O seu objectivo é fazer com que as crianças deixem de ser crianças. Ser criança é ignorar, nada saber, estar perdido. Toda criança está perdida no mundo. A educação existe para que chegue um momento em que ela não esteja mais perdida.
A pedagogia de Paulo Freire amaldiçoava aquilo que se denomina ensino “bancário” — os adultos vão “depositando” saberes na cabeça das crianças da mesma forma como depositamos dinheiro num banco. Mas parece-me que é assim mesmo que acontece com os saberes fundamentais: os adultos simplesmente dizem como as coisas são, como as coisas são feitas. Sem razões e explicações. É assim que os adultos ensinam as crianças a andar, a falar, a dar laço no cordão do sapato, a tomar banho, a descascar laranja, a nadar, a assobiar, a andar de bicicleta, a riscar o fósforo. Tentar criar “consciência crítica” para essas coisas é tolice. O adulto mostra como se faz. A criança faz da maneira como o adulto faz. Imita. Repete. Mesmo as pedagogias mais generosas, mais cheias de amor e ternura pelas crianças, trabalham sobre esses pressupostos. Se as crianças precisam ser conduzidas é porque elas não sabem o caminho. Quando tiverem aprendido os caminhos andarão por conta própria. Serão adultos. Todo mundo sabe que as coisas são assim: as crianças nada sabem, quem sabe são os adultos. Segue-se, então, logicamente, que as crianças são os alunos e os adultos são os professores. Diferença entre quem sabe e quem não sabe. Dizer o contrário é puro “non-sense”. Porque o contrário seria dizer que as crianças devem ensinar os adultos. Mas, nesse caso, as crianças teriam um saber que os adultos não têm. Se já tiveram, perderam…
Mas quem levaria sério tal hipótese? Um profeta do Antigo Testamento — certamente sem entender o que escrevia; os profetas nunca sabem o que estão dizendo — resumiu essa pedagogia invertida numa frase curta e maravilhosa: “… e uma criança pequena os guiará”.
Se colocarmos esta ideia ao pé da fotografia tudo fica ao contrário: é a criança que vai mostrando o caminho. O adulto vai sendo conduzido: olhos arregalados, bem abertos, vendo coisas que nunca viu. São as crianças que vêem as coisas — porque elas as vêem sempre pela primeira vez com espanto, com assombro de que elas sejam do jeito como são. Os adultos, de tanto vê-las, já não as vêem mais. As coisas — as mais maravilhosas — ficam banais. Ser adulto é ser cego. Os filósofos, cientistas e educadores acreditam que as coisas vão ficando cada vez mais claras à medida que as luzes do conhecimento aumentam. Os sábios sabem o oposto: existe uma progressiva cegueira das coisas à medida que o seu conhecimento cresce. “Vale mais a pena¬ ver uma coisa sempre pela primeira vez que conhecê-la. Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez…” As crianças fazem-nos ver “a eterna novidade do mundo…”
Janucz Korczak, um dos grande educadores do século passado — foi voluntariamente com as crianças da sua escola para a câmara de gás de um campo de concentração¬ nazista — deu, a um dos seus livros, o título: Quando eu voltar a ser criança. Ele sabia as coisas. Era sábio. Lição da psicanálise: os cientistas e filósofos vêem o lado direito. Os sábios vêem o avesso. O avesso é esse: os adultos são os alunos; as crianças são as mestras. Por isso os magos, sábios da história natalícia deram por encerrada a sua jornada ao encontrarem um menino num curral… Os adultos, para se salvar, deveriam rezar diariamente a reza mais sábia de todas, escrita pela Adélia:
“Meu Deus, dá-me cinco anos, dá-me a mão, cura-me de ser grande…”
Rubem Alves
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