RESILIÊNCIA
Vou deter-me neste ponto, pois há quem pense estar condenado a ser desgraçado por toda a vida por lhe ter sucedido uma desgraça qualquer (maus tratos, violência, humilhação) na infância. Não é necessário ser muito sagaz para verificar que há muitos meninos no mundo (e muitas meninas, sobretudo muitas meninas) que suportam uma infância atroz. Vítimas da guerra, vítimas de maus tratos, vítimas de vexames, vítimas de abandono, vítimas da falta de amor... Umas crianças, de forma visivelmente aterradora. Outras, de forma camuflada, porém não menos cruel. Terão elas a sua vida destruída? Estarão marcadas para sempre? Não. Há que pôr fim ao fatalismo, ao determinismo, às crenças que engendram destinos sem regresso.
Boris Cyrulnik (2002) utiliza, como subtítulo da sua obra “Os Patinhos Feios”, uma frase que resume a sua tese de base: “A resiliência: uma infância infeliz não determina toda uma vida”. A resiliência é “uma propriedade que define a resistência de um material ao choque”. O autor utiliza o conceito como sinónimo de “resistência ao sofrimento”. Chama a atenção, tanto para a capacidade de resistir aos embates de natureza psicológica, como para o impulso de reparação psíquica que nasce desta resistência.
O autor desta obra tinha apenas seis anos quando conseguiu escapar de um campo de concentração, donde nunca regressaram os restantes membros da sua família constituída por judeus russos emigrantes. Sabe, portanto, muito bem do que está a falar. Sabe (por o ter aprendido no infindável livro da vida) o que é a resiliência. Neurologista e psiquiatra, este professor da Universidade de Var (França) é um dos fundadores da etologia humana e autor de numerosos livros.
A obra “Os Patinhos Feios” transmite uma mensagem de esperança a todas as crianças vítimas de maus tratos, da guerra, da miséria existente no seu meio envolvente. O autor defende que uma criança magoada não tem, necessariamente, de se tornar um adulto fracassado. Este livro é um grito contra o fatalismo, as sentenças definitivas, o carácter irremediável dos traumas. Cyrulnik diz-nos que não existem feridas incuráveis.
Há meninos que foram maltratados, violados, torturados. Há meninas que foram alvo de vexames, que foram brutalmente agredidas pelos próprios pais, pelos familiares, pelos amigos. É triste. É terrível. Muitas destas crianças arrastam consigo esta crença maldita: “a minha vida ficou marcada para sempre. Para mim já não há remédio. Os maus tratos terminaram, mas a sua recordação não acaba nunca”. Mas nem tudo está perdido. Há que insistir na possibilidade de as pessoas se recuperarem e viverem felizes.
Para que se produza um trauma há que ferir duas vezes. Uma vez com os factos, e outra com uma recordação torturante. A tortura não termina com o fim dos maus tratos. A vergonha de terem sido vítimas, o sentirem-se menos que os outros, a suspeita de que os outros não passaram por nada semelhante, o medo de que, a partir de agora, já nada poderá ser “normal”, não deixam de perseguir aqueles que sofreram maus tratos. A dor e a vergonha ficam sepultadas no silêncio.
Há meninas violadas pelos pais que engoliram o seu sofrimento, mantiveram as suas feridas abertas e a sangrar. Ameaçadas pelo medo ou pela humilhação, acabaram por se calar. E, inclusivamente, ao porem as suas mães ao corrente da desgraça que lhes estava a acontecer, obtiveram como resposta um convite ao silêncio, ou uma atitude infame de culpabilização: “Se calhar a culpa foi tua”. “Não gritaste”. “Não resististe o suficiente”. Ou, o que ainda é pior, sentiram-se forçadas a perpetuar uma cadeia de humilhações: “eu também passei pelo mesmo e calei-me”. “Para as mulheres a vida é assim”. “É a lei da vida”. “Há que engolir e calar”.
A evolução dos síndromas traumáticos varia: quadros agudos, negações que reaparecem anos mais tarde, quadros crónicos que estruturam a personalidade, identificação com o agressor, personalidade amoral, frigidez afectiva, culpabilidade torturante, desconfiança constante, psicologia do sobrevivente... São quadros incontestáveis. Mas é, também, incontestável a capacidade de superação. Ninguém tem um estigma indelével gravado na alma. Ninguém pode afirmar com propriedade: “eu cá já estou morto”.Como ajudar as pessoas a exercitar a resiliência? Há que chegar à convicção de que é possível sair do estado em que estamos, e que as nossas feridas podem ser perfeitamente sanadas. Uma ferida não constitui um destino irreversível. Há que caminhar na direcção certa. Para acabar com os maus tratos não basta interromper a tortura, mas é também necessário superar os seus efeitos devastadores. Para isso, é necessário recuperar a confiança em si mesmo e partir ao encontro dos outros. Com certeza que não é fácil. Mas é possível. Existem pessoas e associações que se dedicam a esta bela e extraordinária tarefa de curar, de salvar física e psicologicamente, de fazer com que as pessoas renasçam moralmente. Há pessoas e organizações que dedicam a sua vida a estender uma mão aos que jazem no fosso profundo da dor e da humilhação. Vão até eles a fim de os fazer viver “a possibilidade de dar e receber, de cuidar e ser cuidado”.
Para curar uma má relação é preciso intervir nos dois pólos que a constituem. Se se proporcionar à vítima um clima afectivo, esta poderá reagir mais facilmente. Entre muitas outras histórias, Cyrulnik conta-nos o que aconteceu com Pero. Esta criança tinha dez anos. Nunca tinha ido à escola. De facto, já não havia nenhuma escola nos arredores de Zagreb. A sua família tinha desaparecido. Sobrevivia há três anos numas barracas onde, de vez em quando, lhe iam deixar alguma comida. Para não sofrer demasiado com o desmoronamento humano que o rodeava, esforçava-se por atingir o estado de indiferença. Certo dia, uma professora reuniu algumas crianças e, ao pô-las a estudar, ficou espantada com as qualidades intelectuais de Pero. Confiou-o a uma família de acolhimento que o enviou para a escola. O distanciamento tornou-se para esta criança uma necessidade de adaptação. Bastava-lhe silenciar o seu passado para parecer um menino como os outros. Chamavam-lhe o “belo tenebroso”, pois permanecia silencioso sempre que à sua volta se falava da família ou da vida íntima. E contudo, era alegre e jogava bem futebol. Rapidamente se tornou o primeiro aluno da turma...
O conceito de resiliência abrange os conceitos de elasticidade, dinamismo, recurso e bom humor. A atitude tem a ver com cada pessoa, com a sua forma de ser e reagir. E também com a cultura e o clima moral em que as pessoas se movimentam e respiram. Uma sociedade psicologicamente saudável transmite, por osmose, à pessoas vontade de viver. Paul Claudel, ao assistir ao colapso económico de 1929 nos Estados Unidos, descreve “a angústia que oprimia os corações e a confiança que iluminava os rostos”. Esta atitude mental face à tragédia marcou de tal forma a imagem do mundo que “se alguns homens de finanças chegaram a atirar-se das janelas, não posso deixar de crer que o fizeram na falaz esperança de fazerem ricochete”.
Há que terminar com a tortura, com os maus tratos, com as agressões que provocam dor às vítimas, que aviltam os responsáveis pelos maus tratos e que espalham o terror entre as testemunhas. Mas, no caso de tudo isto ter já acontecido, não nos podemos deixar vencer pelo desespero. As feridas podem ser curadas. Felizmente, as repercussões psicológicas não são irreparáveis. Ninguém está condenado para sempre.
A educação sentimental não consiste, pois, na inclusão duma nova “disciplina” no currículo. Trata-se de fazer com que uma das prioridades da escola seja o desenvolvimento emocional e a aprendizagem da convivência. Uma prioridade sentida por todos, assumida por todos e com a qual todo se sintam comprometidos.
Miguel Santos Guerra
Vou deter-me neste ponto, pois há quem pense estar condenado a ser desgraçado por toda a vida por lhe ter sucedido uma desgraça qualquer (maus tratos, violência, humilhação) na infância. Não é necessário ser muito sagaz para verificar que há muitos meninos no mundo (e muitas meninas, sobretudo muitas meninas) que suportam uma infância atroz. Vítimas da guerra, vítimas de maus tratos, vítimas de vexames, vítimas de abandono, vítimas da falta de amor... Umas crianças, de forma visivelmente aterradora. Outras, de forma camuflada, porém não menos cruel. Terão elas a sua vida destruída? Estarão marcadas para sempre? Não. Há que pôr fim ao fatalismo, ao determinismo, às crenças que engendram destinos sem regresso.
Boris Cyrulnik (2002) utiliza, como subtítulo da sua obra “Os Patinhos Feios”, uma frase que resume a sua tese de base: “A resiliência: uma infância infeliz não determina toda uma vida”. A resiliência é “uma propriedade que define a resistência de um material ao choque”. O autor utiliza o conceito como sinónimo de “resistência ao sofrimento”. Chama a atenção, tanto para a capacidade de resistir aos embates de natureza psicológica, como para o impulso de reparação psíquica que nasce desta resistência.
O autor desta obra tinha apenas seis anos quando conseguiu escapar de um campo de concentração, donde nunca regressaram os restantes membros da sua família constituída por judeus russos emigrantes. Sabe, portanto, muito bem do que está a falar. Sabe (por o ter aprendido no infindável livro da vida) o que é a resiliência. Neurologista e psiquiatra, este professor da Universidade de Var (França) é um dos fundadores da etologia humana e autor de numerosos livros.
A obra “Os Patinhos Feios” transmite uma mensagem de esperança a todas as crianças vítimas de maus tratos, da guerra, da miséria existente no seu meio envolvente. O autor defende que uma criança magoada não tem, necessariamente, de se tornar um adulto fracassado. Este livro é um grito contra o fatalismo, as sentenças definitivas, o carácter irremediável dos traumas. Cyrulnik diz-nos que não existem feridas incuráveis.
Há meninos que foram maltratados, violados, torturados. Há meninas que foram alvo de vexames, que foram brutalmente agredidas pelos próprios pais, pelos familiares, pelos amigos. É triste. É terrível. Muitas destas crianças arrastam consigo esta crença maldita: “a minha vida ficou marcada para sempre. Para mim já não há remédio. Os maus tratos terminaram, mas a sua recordação não acaba nunca”. Mas nem tudo está perdido. Há que insistir na possibilidade de as pessoas se recuperarem e viverem felizes.
Para que se produza um trauma há que ferir duas vezes. Uma vez com os factos, e outra com uma recordação torturante. A tortura não termina com o fim dos maus tratos. A vergonha de terem sido vítimas, o sentirem-se menos que os outros, a suspeita de que os outros não passaram por nada semelhante, o medo de que, a partir de agora, já nada poderá ser “normal”, não deixam de perseguir aqueles que sofreram maus tratos. A dor e a vergonha ficam sepultadas no silêncio.
Há meninas violadas pelos pais que engoliram o seu sofrimento, mantiveram as suas feridas abertas e a sangrar. Ameaçadas pelo medo ou pela humilhação, acabaram por se calar. E, inclusivamente, ao porem as suas mães ao corrente da desgraça que lhes estava a acontecer, obtiveram como resposta um convite ao silêncio, ou uma atitude infame de culpabilização: “Se calhar a culpa foi tua”. “Não gritaste”. “Não resististe o suficiente”. Ou, o que ainda é pior, sentiram-se forçadas a perpetuar uma cadeia de humilhações: “eu também passei pelo mesmo e calei-me”. “Para as mulheres a vida é assim”. “É a lei da vida”. “Há que engolir e calar”.
A evolução dos síndromas traumáticos varia: quadros agudos, negações que reaparecem anos mais tarde, quadros crónicos que estruturam a personalidade, identificação com o agressor, personalidade amoral, frigidez afectiva, culpabilidade torturante, desconfiança constante, psicologia do sobrevivente... São quadros incontestáveis. Mas é, também, incontestável a capacidade de superação. Ninguém tem um estigma indelével gravado na alma. Ninguém pode afirmar com propriedade: “eu cá já estou morto”.Como ajudar as pessoas a exercitar a resiliência? Há que chegar à convicção de que é possível sair do estado em que estamos, e que as nossas feridas podem ser perfeitamente sanadas. Uma ferida não constitui um destino irreversível. Há que caminhar na direcção certa. Para acabar com os maus tratos não basta interromper a tortura, mas é também necessário superar os seus efeitos devastadores. Para isso, é necessário recuperar a confiança em si mesmo e partir ao encontro dos outros. Com certeza que não é fácil. Mas é possível. Existem pessoas e associações que se dedicam a esta bela e extraordinária tarefa de curar, de salvar física e psicologicamente, de fazer com que as pessoas renasçam moralmente. Há pessoas e organizações que dedicam a sua vida a estender uma mão aos que jazem no fosso profundo da dor e da humilhação. Vão até eles a fim de os fazer viver “a possibilidade de dar e receber, de cuidar e ser cuidado”.
Para curar uma má relação é preciso intervir nos dois pólos que a constituem. Se se proporcionar à vítima um clima afectivo, esta poderá reagir mais facilmente. Entre muitas outras histórias, Cyrulnik conta-nos o que aconteceu com Pero. Esta criança tinha dez anos. Nunca tinha ido à escola. De facto, já não havia nenhuma escola nos arredores de Zagreb. A sua família tinha desaparecido. Sobrevivia há três anos numas barracas onde, de vez em quando, lhe iam deixar alguma comida. Para não sofrer demasiado com o desmoronamento humano que o rodeava, esforçava-se por atingir o estado de indiferença. Certo dia, uma professora reuniu algumas crianças e, ao pô-las a estudar, ficou espantada com as qualidades intelectuais de Pero. Confiou-o a uma família de acolhimento que o enviou para a escola. O distanciamento tornou-se para esta criança uma necessidade de adaptação. Bastava-lhe silenciar o seu passado para parecer um menino como os outros. Chamavam-lhe o “belo tenebroso”, pois permanecia silencioso sempre que à sua volta se falava da família ou da vida íntima. E contudo, era alegre e jogava bem futebol. Rapidamente se tornou o primeiro aluno da turma...
O conceito de resiliência abrange os conceitos de elasticidade, dinamismo, recurso e bom humor. A atitude tem a ver com cada pessoa, com a sua forma de ser e reagir. E também com a cultura e o clima moral em que as pessoas se movimentam e respiram. Uma sociedade psicologicamente saudável transmite, por osmose, à pessoas vontade de viver. Paul Claudel, ao assistir ao colapso económico de 1929 nos Estados Unidos, descreve “a angústia que oprimia os corações e a confiança que iluminava os rostos”. Esta atitude mental face à tragédia marcou de tal forma a imagem do mundo que “se alguns homens de finanças chegaram a atirar-se das janelas, não posso deixar de crer que o fizeram na falaz esperança de fazerem ricochete”.
Há que terminar com a tortura, com os maus tratos, com as agressões que provocam dor às vítimas, que aviltam os responsáveis pelos maus tratos e que espalham o terror entre as testemunhas. Mas, no caso de tudo isto ter já acontecido, não nos podemos deixar vencer pelo desespero. As feridas podem ser curadas. Felizmente, as repercussões psicológicas não são irreparáveis. Ninguém está condenado para sempre.
A educação sentimental não consiste, pois, na inclusão duma nova “disciplina” no currículo. Trata-se de fazer com que uma das prioridades da escola seja o desenvolvimento emocional e a aprendizagem da convivência. Uma prioridade sentida por todos, assumida por todos e com a qual todo se sintam comprometidos.
Miguel Santos Guerra
1 comentário:
Excelente Artigo.Tenciono trabalhar este tema com um Grupo de Mulheres, e estas colocações será de grande valia.
Saudações
Rachel Pessoa
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