quinta-feira, 30 de junho de 2011

SER PROFESSOR


“Ser frágil, relacional, inquieto, perplexo; ser na pluridimensionalidade e imprevisibilidade dos acontecimentos; ser livre no peso dos constrangimentos, nos paradoxos da acção; ser confrontado com a alteridade do outro, com a indiferença e as ameaças (ex)implícitas; ser público na aparente privacidade da sala de aula; ser mestre e discípulo; ser compassivo e exigente; ensinar com a razão e a emoção; ser numa ordem balcânica e centrífuga, no silêncio que esmaga
e no ruído que grita; ser na escuta e na comunicação; ser eu porque há o outro (os outros):
ser professor”.

José Matias Alves (2001).

sábado, 25 de junho de 2011

OS PROFESSORES E A VULNERABILIDADE


A concepção de vulnerabilidade enquanto condição estrutural do ser professor (alguns até lhe chamariam "condição existencial", Van Den Berg, 2002) ajuda-nos a compreender a grande variedade de diferentes emoções que a acompanham, em particular quando se lida com exigências de mudança. A falta de controlo total, o facto de os procedimentos de prestação de contas negligenciarem ou instrumentalizarem (e, desse modo, reduzirem) a dimensão interpessoal do ensino, a ausência de uma sustentação válida que justifique as suas acções enquanto professor constituem a real idade que os professores têm de suportar: não há como escapar. "Ensinar é ser vulnerável (. .. ) ser vulnerável é ser capaz de ser ferido" (Bullough, 2005: 23). Isto explica por que tantos professores tomam uma posição positiva em relação aos padrões e aos testes estandardizados. Os padrões e os testes garantem a certeza ou são a prova final da "qualidade" de alguém enquanto professor - mesmo que seja uma certeza ilusória que requer uma compreensão (e experiência) muito redutora da relação educativa.

Por outro lado, a condição da vulnerabilidade é, ao mesmo tempo, o que constitui a grande possibilidade para o "pedagógico" acontecer numa relação interpessoal entre professores e alunos. A relação de uma ética e, desse modo, de um compromisso vulnerável abre a possibilidade de a educação (literalmente) "ter lugar". Tal encontro faz com que o professor sinta que está mesmo "a fazer a diferença enquanto pessoa" na vida dos alunos. O prazer, o orgulho e a satisfação pessoal existencial são as emoções que o acompanham.

In
Geert Kelchtermans (2009) O comprometimento profissional para além do contrato: Autocompreensão, vulnerabiIidade e reflexão dos professores.

DÉFICE DE PEDAGOGIA


Vivemos um tempo paradoxal em que o senso comum parece proclamar que estamos assim (no campo dos processos e dos resultados educativos) por causa do excesso de pedagogia. Ora, estamos assim, justamente, por causa do seu défice.
Porque temos dificuldade em transmitir conhecimentos. Porque não sabemos didactizá-los de modo potenciar a aprendizagem. Porque a avaliação que usamos é pobre e está ainda pouco ao serviço da aprendizagem. Porque não conhecemos o suficiente a bioquímica do cérebro e o modo como aprende. Porque os métodos de ensino são por vezes monótonos, repetitivos e entediantes. Porque na sociedade de consumismo em vivemos é muitas vezes difícil conduzir os alunos pelo árduo caminho do método, do rigor, do significado, do sentido.
Tudo isto é a pedagogia que precisamos de redimir e activar. Longe das frasealogias e dos discursos que nada dizem.

SOPA COM O GARFO


O ser humano converteu-se num especialista em complicar as coisas e em complicar a sua própria vida e relações. Procuramos problemas, inventamo-los e, se já existem, procuramos torná-los ainda mais intrincados. Podendo fazer tudo de forma complicada, porquê tentar fazê-lo de forma mais simples? Não nos aceitamos a nós próprios, comparamo-nos com os outros, competimos com todos. Sofremos mais com a perda de um ser querido do que, em comparação, desfrutamos com a sua presença. Se nos falta saúde, lamentamos não tê-la valorizado quando a tínhamos. Fabricamos labirintos para nos perdermos. Se o Pedro se enamora da Maria, é provável que esta se enamore do João. Complicamos tudo. Tentamos despir a camisa antes de tirar a camisola. Destacamos o negativo. Por exemplo, se podemos viajar de avião (conquista quase incrível), o que mais nos afecta é a distância de casa ao aeroporto.

José María Cabodevilla escreveu um livro muito bonito (mais um e superam já a vintena) sobre a incrível arte que praticam os humanos de complicar as coisas. O título do livro, que encabeça estas linhas, é um bom exemplo deste processo. Ninguém pode negar que comer a sopa com um garfo é ter vontade de o fazer difícil, de demorar muito e de não desfrutar da sopa. O subtítulo do livro é uma síntese perfeita: tratado das complicações humanas.

O ser humano, diz Cabodevilla, é complicado na forma como pensa, como ama e como sofre. De facto, os humanos gostam de percorrer o caminho mais longo e mais tortuoso, organizar corridas de obstáculos e aproximar o piano do banco em vez de chegar este ao piano

Nuno Crato e o "Eduquês" (?!...)


O novo Ministro da Educação (e da Ciência e do Ensino Superior) despreza a escola progressista e as “pedagogias modernas”. Diz que um dos principais problemas da escola portuguesa é a falta de exames. O seu discurso fácil deve ser examinado.
Nuno Crato desconfia dos métodos pedagógicos não directivos e prefere a escola da transmissão de conhecimentos. Eriça-se contra o “eduquês” e deleita-se com os modelos de ensino chinês e japonês. Lembra que primeiro é preciso saber os nomes das capitais e as linhas de caminho de ferro e só depois pensar. Sublinha que a política educativa deve servir para seleccionar e não para incluir. Diz ainda que em Portugal não há exames e que isso é uma pena porque a fazer exames aprende-se mais do que a estudar de forma calma e descontraída. Mais: rejeita a “pedagogia romântica e construtivista” até porque “Rousseau não era um homem das luzes”. Diz que nunca ouviu falar da escola de Summerhill, talvez porque prefira a autoridade explícita à “motivação e disciplina interior”. Para Crato “desaprende-se com as ciências da educação” e até nem era mal pensado “implodir o Ministério” .
O cardápio de disparates é longo. Mas tudo é dito do alto da cátedra, qual D.Quixote a combater inimigos imaginários. A culpa da falência da escola é a sua contaminação pelos métodos activos, pelas pedagogias não directivas, pelo “aprender a aprender”, pelo ensino “centrado no aluno”, ou pela “aprendizagem por competências”. Ignora Crato que as únicas escolas ou grupos de professores que aprofundaram estes métodos – como a Escola da Ponte ou o Movimento Escola Moderna – obtêm excelentes resultados ao nível da preparação dos alunos. Ignora Crato que na maior parte das salas de aula deste país prevalece ainda o ensino centrado no discurso do professor. Ou talvez não ignore. Talvez pretenda apenas agitar um fantasma que poucas vezes saiu dos sótãos para assim legitimar um regresso ao passado e à matriz conservadora. Mas se queremos uma escola de massas ela não pode ser livresca e directiva, pois assim rapidamente deixará de ser para todos. O projecto de Crato é por isso elitista.
Compreende-se o equívoco. O livro que popularizou Crato e as suas ideias chama-se “O Eduquês em Discurso Directo: Uma Crítica da Pedagogia Romântica e Construtivista”. Ora, se Crato se levasse a sério assumiria que a Pedagogia Romântica e Construtivista nunca passou, salvo honrosas excepções, disso mesmo, de discurso directo. “Eduquês” foi a palavra utilizada pela primeira vez por Marçal Grilo para criticar o discurso hermético dos documentos do Ministério da Educação, uma reacção contra o ininteligível. Em boa verdade é até uma crítica justa. A pedagogia, em vez de passar para as salas de aula, passava apenas para os papéis com uma linguagem muitas vezes anti-pedagógica porque nada queria dizer. Naturalmente, um discurso que não tem nenhuma relação com a prática só pode aparecer aos olhos dos professores como um balão cheio de ar, uma bula incompreensível. Por isso este “eduquês”, sem porta por onde entrar nas salas de aula, transformou-se num “burocratês”, numa parafernália de reuniões, de planos de recuperação, de projectos educativos e projectos curriculares de turma, que raramente têm algum significado para o trabalho de alunos e professores, dada a gritante falta de meios humanos e materiais. Com um corpo docente precarizado, e salas a abarrotar, sem equipas multidisciplinares e apoios educativos que dispensem as explicações privadas, seria difícil esperar a “massificação” da tão necessária “pedagogia moderna”.
O equívoco ajuda a explicar a popularidade de Crato no seio dos professores. É um discurso que agrada tanto aos adeptos da escola antiga como aos que estão fartos do autoritarismo burocrático que tem passado pelo Ministério. Rodrigues e Alçada deixaram-lhe o terreno fértil. Quiseram fazer do sucesso escolar um desejo estatístico, culparam os professores pelos fracos resultados sem lhes dar os meios. Facilitaram a vida ao discurso anti-“facilitismo”. Colaram o sensato objectivo do fim dos chumbos a uma espécie de atribuição de diplomas à ignorância. Souberam queimar uma ideia e abriram caminho aos espinhos de Crato.
O pior é que o pensamento do Ministro Independente cola às mil maravilhas com o programa neoliberal da troika e do governo: despedimentos em massa de professores, cortes orçamentais draconianos em cada escola, turmas maiores, menos apoios educativos. Talvez nesta altura os docentes que se deixaram encantar pelo discurso da sereia compreendam o desenho por inteiro. Afinal, a escola autoritária e livresca sempre é mais barata do que a tal escola moderna. É uma escola mais fácil porque será mais elitista.
Ser exigente não é pedir mais exames, porque eliminar, seriar e avaliar é muito fácil. A dificuldade, a exigência, o combate contra o facilitismo, é a construção de uma escola democrática, de qualidade, de massas, e que dá tudo por tudo para que cada aluno/a cresça, aprenda, saiba, seja, critique, pense. Para este trabalho tão trabalhoso já sabemos que não podemos contar com o esforço e o mérito de Nuno Crato. Nesse exame chumbará por falta de comparência.
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Miguel Reis

domingo, 19 de junho de 2011

Problemas da escola hoje e formação de professores


A escola de hoje, ao abranger toda a população escolarizável, está envolvida em todo um conjunto de problemas e dificuldades, com os quais os professores (e a comunidade educativa em geral) têm de lidar.
Eis algumas situações exemplificativas destes problemas e dificuldades: (i) violência escolar/ bullying (Raum, 2009), isto é, um tipo de comportamento agressivo e negativo, executado repetidamente, que ocorre num relacionamento onde há um desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas; (ii) indisciplina em contexto escolar (Caeiro e Delgado, 2005; Amado e Freire, 2009, Picado, 2009), um comportamento desviante em relação a uma norma explícita ou implícita sancionada em termos escolares e sociais; (iii) abandono escolar (Canavarro, 2007), atitude relacionada com o deixar o sistema escolar em idade de frequência obrigatória do mesmo, sem obtenção da certificação devida; (iv) insucesso escolar, (Fonseca, 1999) caracterizado pela incapacidade de uma criança/adolescente/jovem corresponder aos objectivos da escola em termos escolares, sendo que uma das manifestações é exactamente o abandono escolar; outros desafios se apresentam ainda, como o alargamento da escolaridade obrigatória até aos 18 anos, a qualidade das aprendizagens dos alunos, a diferenciação pedagógica, a gestão escolar, problemas de inclusão/exclusão, entre outros.
As situações enumeradas fazem com que se fale hoje, com muita frequência, em “crise da educação”, mas, esta crise pode ser aqui encarada como uma oportunidade de crescimento. Para que tal possa acontecer será necessário (re)pensar o processo de construção da identidade profissional docente e respectiva formação. Esta identidade é construída e vivida no contexto das escolas como organizações, tornando indissociáveis as dimensões pessoais e colectivas do seu exercício. As relações colegiais e colaborativas entre os membros do corpo docente nas escolas são largamente reconhecidas como um factor determinante e muito forte para o desenvolvimento da escola, para a implementação bem sucedida das inovações e para a satisfação profissional (Kelchtermans, 2009). Neste sentido, García (1999) aposta no “desenvolvimento profissional dos professores”, enquanto abordagem na formação de professores que valoriza o carácter pessoal e contextual, organizacional e orientado para a mudança. Esta abordagem pressupõe a ultrapassagem do carácter tradicionalmente individualista das actividades dos professores. Assim, o desenvolvimento do professor não ocorre no vazio, mas inserido num contexto mais vasto de desenvolvimento organizacional e curricular.
Deixamos aqui elencados os modelos de desenvolvimento profissional dos professores apresentados por este autor (Garcia, 1999):
a) Desenvolvimento profissional autónomo, no qual os professores decidem aprender por si mesmos, de acordo com as necessidades sentidas, dirigindo os seus próprios processos de aprendizagem e de (auto)formação, aliás, em consonância os princípios de aprendizagem dos adultos. Exemplos deste tipo de formação podem ser cursos à distância de aprofundamento de leituras, ou cursos de especialização não directamente destinados a formar docentes…cursos de verão, cursos de especialidade, doutoramentos, seminários permanentes…
b) Desenvolvimento profissional baseado na reflexão, no apoio mútuo e na supervisão, segundo o qual a reflexão é tida como estratégia para o desenvolvimento pessoal, promovendo competências metacognitivas que permitam ao professor conhecer, analisar, avaliar e questionar a sua própria prática docente, por ex., através de análise de casos ou de biografias profissionais.
c) Desenvolvimento profissional centrado na escola e em projectos, que é baseado nas necessidades da escola, utilizando o saber-fazer dos professores da escola e implicando os professores na implementação de uma inovação potenciadora de ocorrências de mudanças significativas.
d) Desenvolvimento profissional através de cursos de formação, em que um grupo de professores participam durante um certo período de tempo em actividades estruturadas para alcançar determinados objectivos e realizar tarefas estabelecidas, as quais levam a uma nova compreensão e mudança da conduta profissional.
e) Desenvolvimento profissional através da investigação, de acordo com este modelo surge a imagem do professor como investigador ligada ao movimento de investigação-acção, procurando melhorar a profissionalidade, através de um aprofundamento da capacidade de análise crítica, centrada na prática, num projecto estruturado, concebido para enfrentar um problema concreto.

Importa, no entanto, que qualquer que seja o modelo utilizado, este possa ser inserido no quadro de uma “aprendizagem organizacional”, ou seja, entendendo a escola como uma organização que aprende (Bolívar, 2003). Nesta óptica, a escola e os seus actores, ao aprenderem colegialmente, possuem uma competência nova com a qual podem resolver criativamente os seus problemas. Senger (citado em Bolívar, 2003) define “organizações que aprendem” como “organizações onde os indivíduos expandem continuamente a sua aptidão para criar os resultados que desejam, onde se criam novos e expansivos padrões de pensamento, onde a aspiração colectiva fica em liberdade, e onde os indivíduos aprendem continuamente a aprender em conjunto”.


Referências bibliográficas
Amado, J. S. & Freire, I. P. (2009). A(s) indisciplina(s) na escola. Compreender para prevenir. Coimbra: Almedina.
Bolívar, A. (2003). A escola como organização que aprende. Em R. Canário (Org.), Formação e situações de trabalho. Porto: Porto Editora.
Caeiro, J. & Delgado, P. (2005). Indisciplina em contexto escolar. Lisboa: Instituto Piaget.
Canavarro, M. (2007). Para a compreensão do abandono escolar. Lisboa: Texto.
Fonseca, V. (1999). Insucesso escolar. Lisboa: Instituto Piaget.
García, C. M. (1999). Formação de professores, para uma mudança educativa. Porto: Porto
Kelchtermans, G. (2009). O comprometimento profissional para além do contrato: auto-compreensão, vulnerabiIidade e reflexão dos professores. Em M. Flores e A. Veiga Simão (Org.), Aprendizagem e desenvolvimento profissional de professores: contextos e perspectivas. Mangualde: Pedago.
Picado, L. (2009). A indisciplina em sala de aula: uma abordagem comportamental e cognitiva. Psicologia.com.pt o portal dos psicólogos. Recuperado em 2011, Junho 13, de http://www.psicologia.com.pt
Raum, E. (2009). Bullying. Londres: Capstone Global Library.

Roque R. Antunes

Pensamento educacional de Hirsch


Em que consiste o novo paradigma?
Em 1998, eu escrevi isto a propósito do novo paradigma educacional proposto por E. D. Hirsch:
"Central no modelo curricular de Hirsch é a recusa da transposição simples e imediata dos resultados das investigações em Psicologia e em Sociologia para o campo educativo.
Os resultados das investigações educacionais devem, também, ser encarados com muito cuidado e a sua transposição para a prática educacional nem sempre é recomendável, uma vez que a qualidade da escola e do ensino exige estabilidade e continuidade de processos, sendo, portanto, incompatível com a realização de experiências sucessivas, mal conduzidas e frequentemente pouco testadas.
Uma tese central no pensamento de Hirsch é que a educação e a escola têm vindo a sofrer, nas últimas décadas, sucessivas pressões por parte de alguns investigadores, políticos e decisores demasiado apressados na tentativa de transposição dos resultados das investigações das Ciências Sociais, e em particular da Psicologia e da Sociologia, para a prática educacional.
Essas pressões têm vindo a criar uma grande instabilidade e confusão sobre as finalidades e os meios educacionais, transformando, por vezes, as escolas em laboratórios e os alunos em cobaias.
A recusa da escola como palco de batalhas políticas expressas através de sucessivas revisões curriculares, com a finalidade de subordinar os objectivos e os conteúdos do ensino à filosofia política e à agenda político-pedagógica das elites com poder de decisão, constitui outra importante linha de força do modelo curricular de Hirsch.
A esse propósito, Hirsch considera que uma das razões que explicam o declínio da qualidade de ensino, nas últimas décadas, tem sido o movimento pendular de pressão a que a escola e o currículo foram submetidos, ao sabor das modas psicopedagógicas apressadamente "vendidas" como soluções milagrosas para a reforma educativa.
Os "vendedores de modas pedagógicas" são, regra geral, pessoas desligadas dos problemas do dia-a-dia escolar e interessados em "vender" aos professores as últimas novidades criadas por pequenos e grandes "gurus" que arrastam consigo pequenas multidões de servidores acríticos.
Os "vendedores de modas pedagógicas" fazem da inovação permanente o seu objectivo, procurando remover do currículo e da prática educativa tudo aquilo que o tempo e a experiência testaram e mostraram possuir valia e eficácia. A justificação que dão para a desvalorização dos conteúdos não podia ter menos sentido, na perspectiva de Hirsch.
A pretexto de que a Ciência e a Tecnologia avançam a um ritmo muito rápido, tornando obsoletos os saberes adquiridos, não seria necessário o conhecimento, pelos alunos, dos fundamentos, trajectórias, princípios, leis e teorias que marcaram os progressos da Humanidade nos domínios das Humanidades, Ciências, Técnicas e Artes.
Esses autores recusam ver, segundo Hirsch, que a resolução de problemas só assume significado para o aluno quando previamente assente num conjunto de informações e dados constitutivos dos vários ramos do saber. A resolução de problemas não se faz no vácuo e jamais pode ser dissociada dos conteúdos que constituem o "corpus" do currículo escolar".
A propósito das propostas educacionais de E. D. Hirsch, escrevi também isto:
"Considera-se que os conteúdos e as competências não são mutuamente exclusivas, antes surgem associados, embora só faça sentido o desenvolvimento de competências por referência a determinados conteúdos.
A aprendizagem de novas competências não se faz no vácuo, exigindo, pelo contrário, uma relação íntima com os conteúdos que lhes dão substância e significado. Ou seja, o saber-como e o saber fazer só têm sentido se estiverem relacionados com o saber que. E. D. Hirsch critica o facto de muitas escolas desvalorizarem os conteúdos, mostrando-se céptico em relação às metodologias que apenas promovem o aprender a aprender, o saber como e o saber-fazer.
Na verdade, E. D. Hirsch não prescreve metodologias de ensino e está mais preocupado com aquilo que se ensina do que com a forma como se ensina. Partindo do princípio de que os alunos aprendem de maneira diferente uma vez que são portadores de estilos cognitivos diferentes, E. D. Hirsch recomenda a utilização de metodologias diversas, embora critique a ausência de momentos para a memorização de factos, datas e noções e a desvalorização do treino, da prática e da repetição.
A aprendizagem é um processo que exige esforço continuado, muita repetição, perseverança, cumprimento rigoroso de objectivos, orientação clara e continuada do professor e o acesso a materiais auxiliares de grande qualidade e clareza.
Embora o objectivo seja o desenvolvimento de operações cognitivas de alto nível cognitivo, considera-se que a memorização e as actividades repetitivas ajudam o aluno a desenvolver mecanismos de aprendizagem que são essenciais para o acesso a operações mais complexas.
Os automatismos decorrentes das actividades de repetição constituem, no entender de Hirsch, instrumentos essenciais ao progresso da aprendizagem, facilitando, simultaneamente, o gosto pelo aprender.
O currículo apresenta-se de acordo com uma sequência lógica que acompanha o nascimento e desenvolvimento das civilizações, das ciências, da tecnologia e das artes. O respeito pela sequência das etapas civilizacionais e culturais é um requisito básico, porque facilita a compreensão do aluno e evita repetições indesejadas das matérias e saltos no tempo.
Prof. Ramiro Marques

quinta-feira, 16 de junho de 2011

A ESCOLA E A ILITERACIA DIGITAL


A escola continua a ser o lugar mais privilegiado para a divulgação e a utilização didáctica e crítica das novas tecnologias da informação e da comunicação (TIC).
Por isso mesmo, torna-se imprescindível que os docentes sejam formados e motivados para uso dessas novas tecnologias, concebendo-as como instrumentos que devem interagir com os projectos pedagógicos a desenvolver com os alunos.
Todavia, é importante reconhecer que, apesar da assumida necessidade de incluir todas as novas tecnologias no processo educativo, uma boa escola continua a ser o que sempre foi: um espaço em que aprendentes e educadores se encontram, num ambiente que estimula a auto estima e o desenvolvimento pessoal e que oferece janelas de oportunidade para o sucesso num mundo que gira em contra ciclo, ao promover o egoísmo, o individualismo e a concorrência desregrada.
É que não há nenhuma solução tecnológica que seja capaz de induzir o milagre de transformar um espaço pobre em relações humanas num lugar interessante e adequado para gerar a construção de um cidadão com sólidos valores morais e com uma ética de respeito para com os princípios da democracia e do humanismo.
Vivemos num novo milénio que pretende reconfigurar a sociedade, atribuindo-lhe um novo formato centrado em novas formas de receber e transmitir a informação, o que implica uma busca interminável do conhecimento disponível. Para alcançar tal objectivo, imputa-se à escola mais uma responsabilidade: a de contribuir significativamente para que se atinja o que se convencionou designar por analfabetismo digital zero. Para tal, a educação para a utilização das TIC precisa ser planeada desde o jardim-de-infância. Sem preconceitos ou desnecessárias coacções, sem substituir atabalhoadamente o analógico pelo digital, mas sim reforçando a capacidade cognitiva dos alunos e guiando a descoberta de novos horizontes.
Este novo movimento de ruptura não deve representar a eliminação ou a fictícia substituição dos meios de comunicação de massa tradicionais. O que há de novo é a necessidade de fazer convergir todos esses meios num processo integral de formação do indivíduo, capacitando-o para descodificar as mensagens que lhe saltam em cada canto e cada esquina da sociedade do conhecimento.
Esse movimento deve ser capaz de preparar os jovens para serem leitores críticos e escritores aptos a desenvolver essas competências em qualquer dos meios suportados pelas diferentes tecnologias. Hoje, não basta que o aluno só aprenda a ler e escrever textos na linguagem verbal. É necessário que ele aprenda a “ler” e a “escrever” noutros meios, como o são a rádio, a televisão, os programas de multimédia, os programas de computador, as páginas da Internet e, até, o telemóvel…
Por tudo isso, as novas tecnologias da informação e comunicação devem obrigar à alteração dos currículos escolares e a modificação da formação e actuação do professor, que se deve sentir obrigado a actualizar-se em relação às TIC, de forma a acompanhar a dinâmica de obtenção de informação e de transformação desta em conhecimento. Nesse processo, a educação à distância assume-se como um indispensável complemento do ensino presencial, enquanto modelo de comunicação educativa que permite superar distâncias e ampliar o acesso ao conhecimento.
Os jovens foram os primeiros a descobrir que as novas tecnologias da informação e da comunicação implicam inúmeras possibilidades de aprender. Para eles há muito que elas deixaram de ter um estatuto de menoridade e de simples auxiliar da apreensão do conhecimento. Os estudantes olham-nas como outras formas de aprender que implicam a mudança dos modos de comunicação e dos modos de interação nos grupos de pares.
Importa, pois, ter consciência que este novo mundo facilita o trabalho docente, mas também acrescenta angústia e complica a vida do professor. Este, para além de necessitar possuir um conhecimento específico da área científica que lecciona, deverá também ser capaz de identificar nas tecnologias digitais as múltiplas linguagens favorecedoras da apreensão da realidade.
Não é fácil, mas é esta é a contribuição que as novas tecnologias podem oferecer para a consolidação de um mundo mais solidário, desde que a sociedade o queira integrar de uma forma crítica e eticamente incontestável.

João Ruivo

NOVAS OPORTUNIDADES, debate precisa-se


As críticas a este programa não são de hoje. Escutam-se, há muito, não, apenas, em surdina, mas, também, de forma mais explícita e fundada, em meios educativos e sociais. Na recente campanha eleitoral ultrapassou o campo educativo, para se tornar numa arma de arremesso político, com uns a considerarem que a sua eficácia é questionável, e outros a reafirmarem que só tem “virtudes” e que todos os que a frequentaram estão mais contentes e felizes. Isto é demasiado sério para se poder caricaturar ou fazer generalizações simplistas, estamos a falar de pessoas que acreditam (pelo menos, muitas delas) que o programa pode melhorar as suas vidas.
Os que tecem críticas fazem-no por entenderem que se trata de uma medida de elevados custos e sem o desejável retorno social; uma medida que cria facilitismos, baixa a exigência e o rigor, caindo num “falso sucesso”, com a inevitável descredibilização dos diplomas, das instituições formadoras e até da própria escola.
Os que a defendem consideram que existe, sempre, um ganho real para a vida pessoal dos jovens e adultos que frequentam as Novas Oportunidades, para a sua auto-estima e participação cívica, mesmo que estes não venham a melhorar a sua vida profissional ou a conseguir um trabalho futuro na sua área de certificação ou/e de formação.
Seria, assim, se estas pessoas, e suas famílias, não tivessem criado legítimas expectativas, que muitos deles, depois, vêem frustradas. Este é um ponto central, mais que a questão dos custos e dos processos menos exigentes (casos haverá) de formação e de certificação de competências. Ver jovens que, embora com um diploma na mão, não vêem quaisquer possibilidades de concretização das suas aspirações, porque a sua formação não é devidamente reconhecida, é injusto e não pode deixar de nos preocupar a todos.
Nenhuma medida de equidade é justa se, em vez de esbater as desigualdades a que se destina, criar novas e maiores desigualdades, que é o que acontece com a desvalorização social dos diplomas das Novas Oportunidades. Este é, porventura, um dos aspectos mais decisivos, mas há, ainda, outro que tem a ver com a questão da motivação.
Lembremos que a igualdade de oportunidades em educação se destina àqueles que, tendo desejo e vontade de aceder e frequentar a escola, não tem condições económicas e sociais favoráveis, devendo o Estado garantir essas condições. Nas Novas Oportunidades, o desfavorecimento económico e social pode existir, mas, talvez, o desejo de aprender e de completar a escolaridade básica e/ou secundária, esteja longe de muitos (não de todos, claro) dos que se vêem “empurrados” para este programa, por condicionalismos das suas vidas – abandono escolar precoce, desintegração social, desemprego, obrigações do rendimento mínimo de inserção….
Seria uma medida de verdadeira igualdade de oportunidades, se respondesse a uma vontade genuína dos jovens e adultos de regressarem à escola para adquirirem ou completarem habilitações e se fossem garantidos os padrões de qualidade e de credibilização social dos diplomas atribuídos. É nestes pontos que o debate e os esforços se devem concentrar, para que a Iniciativa Novas Oportunidades, fazendo jus à designação, seja, de facto, uma nova oportunidade, na vida dos que a frequentam.

Maria Rosa Afonso, professora

quarta-feira, 8 de junho de 2011

LITERACIA EMOCIONAL


Celso Antunes (1991), Alfabetização emocional, novas estratégias . Petrópolis: Vozes

“... Os anos 90 como a década do cérebro.”
16 “... Binet, com os recursos do seu tempo, percebeu a inteligência como tendo dois espectros- o verbal e o lógico-matemático. Para medi-los desenvolveu o teste de Q.I que da França expandiu-se para o mundo todo.”
16 “... Gardner chegou com uma visão pluralista da mente, concebendo diferente visão sobre as competências intelectuais humanas. Antes era um ser restrito, eventualmente
‘“tocado’ por esse ou aquele ‘dom divino’ que o fazia genial, agora se descobre um ser humano holístico, com potencial para desenvolver múltiplas inteligências...”
17 “... A Alfabetização Emocional, ainda que jamais tire do individuo o poder de seu arbítrio, pode ajudá-lo a perceber seus estados emocionais e melhor administrar eventuais explosões, se efetivamente deseja fazê-lo.”
18 “Quando sugerimos algumas estratégias para o desenvolvimento da Alfabetização Emocional, o fazemos na esperança de que as ações vivenciadas pelas diferentes técnicas ampliem o acervo de “fichas” na memória de longo prazo do aluno, e que esses sinais possam ajudá-lo a eventualmente administrar suas emoções.”
19, 20 “As inteligências localizadas por Gardner, e que levam a escola a se perguntar como explorá-las e desenvolve-las plenamente, são as seguintes: inteligência lingüística, inteligência lógico-matemática, inteligência espacial é a capacidade de formar, manobrar e operar um modelo do mundo no espaço, inteligência musical, inteligência corporal- cinestésica.”
21 “... As inteligências interpessoais (capacidade de compreender outras pessoas e os que a motiva) e a Intrapessoal (capacidade de auto-estima e de formar um modelo coerente e verídico de si mesmo, usando esse modelo para operacionalizar a felicidade)...”
22 “Ao se concluir esse quadro de inteligências múltiplas que, como já foi dito, está longe temporalmente de ser limitado a apenas nove, cabe destacar a triste posição da escola diante do notável ser humano Montado e formatado para apreciar somente as inteligências Lingüísticas e Lógico–matemática, ela está perdendo notável oportunidade para construir um homem coerente com sua extraordinária capacidade.”
23 “Uma visão da natureza humana que ignora o poder das emoções é lamentavelmente míope. O próprio nome homo sapiens, a espécie pensante, é enganoso à luz da nova apreciação e opinião do lugar das emoções em nossas vidas, que nos oferece hoje a ciência. Como todos sabemos por experiência, quando se trata de modelar nossas decisões e ações, o sentimento conta exatamente o mesmo – e muitas vezes mais- que o pensamento. Fomos longe demais à enfatização do valor e importância do puramente racional- do que mede o Q.I. - na vida humana. Para o melhor e para o pior, a inteligência não dá em nada quando as emoções dominam.”

26 “Para Goleman, a Inteligência Emocional pode ser expressa através de cinco pontos essenciais: 1- Autoconhecimento, 2- Administração das emoções, 3- Empatia, 4- Automotivação, 5- Capacidade de relacionamento pleno.”
27 “Segundo Goleman, Hoje, é a Neurociência que defende o levar a sério as emoções. As novas da ciência são encorajadoras. Dizem-nos que, se dermos mais atenção sistemática “a Inteligência Emocional- ao aumento da autoconsciência, a lidar mais eficientemente com nossos sentimentos aflitivos, manter o otimismo e a perseverança apesar das frustrações, aumentar a capacidade de empatia e envolvimento, de cooperação e ligação social- o futuro pode ser mais esperançoso.”
28 “Mas, além, das obras de Gardner e a de Daniel Goleman (...) cabe citar o excelente estudo de Antonio Damásio, O erro de Descartes (...). De extremo valor parecem-nos também os estudos do pesquisador Joseph Le Doux... em seu belo livro, O cérebro emocional... (...) Nessa mesma linha constituiria injustiça não sugerir também a obra O sitio da mente, de Henrique S.Del Nero”
29 “Não estamos, portanto, sugerindo a criação de uma Alfabetização Emocional como produto de obras que acabamos de conhecer, mas como resultado seqüencial de uma experiência pedagógica de mais de trinta anos.”
35 “O mundo já mudou. A escola não. Não se defende a utopia de que um dia a escola possa substituir o papel de um lar; mas é imperioso reconhecer que a radical mudança da estrutura familiar implica em inevitáveis mudanças nos conteúdos e nas estratégias desenvolvidas em nossa escola. O professor não pode e não pretende substituir os pais, mas precisa descobrir-se responsável por novas funções, ajustando-se a uma nova realidade.”
42 “Uma questão sempre pendente é esta: Em que idade a Alfabetização Emocional deve ser iniciada? O relevante nessa questão é descobrir a intensidade com que esses temas possam ser discutidos em classe. Havendo sensibilidade para fazê-lo vigorar quando brotar da curiosidade da criança, constata-se que nunca é cedo demais. Concordamos integralmente com Daniel Goleman quando afirma: “os anos de pré-escola são cruciais para deitar as bases das aptidões” identificando os benéficos efeitos sociais e emocionais em longo prazo sobre as crianças que, já há décadas, tiveram esse treinamento.”
44 “(...) A carga horária da Alfabetização Emocional e a do como aprender poderiam simplesmente se autocomplementar: mais uma aula semanal em vinte e cinco a trinta ministradas aos alunos não acarretaria sobrecarga aos mesmos e nem levaria mantenedores à falência.”
46 “A Alfabetização Emocional implica num mandato ampliado para as escolas, entrando num lugar de famílias com falhas na socialização das crianças. Essa temerária tarefa exige duas grandes mudanças: que os professores vão além de sua missão tradicional, e que as pessoas na comunidade se envolvam mais com as escolas”


95 “Um dos problemas mais difíceis de serem solucionados na implantação da Alfabetização Emocional diz respeito aos seus eixos temáticos. (...) Em Alfabetização Emocional essa pretensa hierarquia é bem mais difícil, uma vez que seus temas se interligam e seus conhecimentos se insurgem como uma rede de significados múltiplos e articulados, em permanente sistema de evolução e, portanto, transformação, cuja construção inicia-se muito antes da chegada do aluno á escolaridade e prossegue com ou sem a mesma.”
98 “A Alfabetização Emocional trabalha com outro paradigma de avaliação, que é justamente o conceito ótimo. Portanto, vale apenas o que o aluno progrediu em relação a si mesmo. Nesse contexto, o trabalho e conseqüentemente a avaliação são centrados na individualidade, ainda que desenvolvidos para uma coletividade. Com esse sistema de avaliação desaparecem eventuais boletins, e cada aluno se torna proprietário de um portfólio onde estão anotados seus desempenhos e onde estão selecionados seus melhores e mais expressivos trabalhos, independente de terem notas ou não.”
102 “Seja prudente com a novidade. Nunca a procure por ela mesma, mas pela melhoria que poderá proporcionar ao seu trabalho e a sua vida. Essa melhoria depende tanto de você como da própria novidade. (...) você deve adotar, com a mesma prudência, as técnicas modernas, procurando as que – fruto de trabalhadores experimentados – lhe pareçam mais aptas para enfrentar os sismos a que você terá que subir: não se admire se, a principio, não forem absolutamente utilizáveis.”

FLUXO E PERSONALIDADE AUTOTÉLICA


Fluxo e Fluir
Fluir levanta um paradoxo neural, porque traduz uma estranha forma de gasto de energia: independente do alto nível de exigência do trabalho, o cérebro funciona com um nível mínimo de actividade e de consumo de energia (Goleman, 1999: 114, 115). No fluxo «o cérebro é preciso no seu padrão de activação (...) com efeito frenador sobre a excitação cortical», com efeito curioso ao nível da realização pessoal: quanto mais se trabalha... menor parece ser o cansaço, e maior parece ser a energia. Nestas situações emerge um sentimento de regozijo, um profundo sentimento de alegria ou felicidade... límpida, pura e simples, o que parece converter-se para o sujeito, num referencial de auto-conceito e auto-realização pessoal, na perspectiva do ideal de felicidade ou bem-estar pleno, numa paz sentida como um encontro consigo mesmo.(196)
Este conjunto de respostas ao trabalho, remetem para o «tipo de personalidade autotélica» (Csikszentmihalyi, 2004: 311), que por oposição à exotélica, deveria ser ensinada, para que o sentimento de fluxo se pudesse replicar. As actividades autotélicas têm o fim em si mesmas, o prazer está no seu próprio envolvimento, e não para obter algum benefício, ou agradar. A maioria das coisas que se fazem na vida, são um misto de autotélicas/exotélicas, tendo em conta os contextos que a própria vida impõe.
É aqui que pode levantar-se a questão: como é que alguém consegue converter as actividades puramente exotélicas de uma profissão, em actividades de natureza autotélica, em que se vêem progressiva e profundamente envolvidas?
Ou seja, como se passa do sentido de «Fazer o que se quer versus querer (amar) o que se faz»? A essência parece apontar para o sentimento de prazer que alguém experimenta ao fazer algo: este não depende tão só do que (acção) se faz mas também de como (processo, percurso) se faz.
Investigações no campo da fisiologia induzem a pensar que as pessoas capazes de sentir fluxo mais frequentemente, têm a habilidade de reduzir a actividade mental em todos os canais de informação à excepção daquele em que estão conectados, e concentram toda a sua energia psíquica nessa acção, capacidade que segundo Csikszentmihalyi (2004), não tem que ser necessariamente herdada, e bem pelo contrário, pode ser aprendida.
O fluxo, segundo este autor, leva as pessoas a desenvolverem o percurso de vida a um outro nível: ao da criatividade e ao da motivação intrínseca, que são fenómenos emocionalmente inteligentes, já que conduzem a pessoa a envolver-se espontaneamente num processo de Aprender ao longo de toda a vida. (197)

Extractos da tese de doutoramento

Veiga Branco, M. A. R. (2005). Competência emocional em professores. Um estudo em discursos do campo educativo. Tese de doutoramento inédita, Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação


Maria Augusta Romão Veiga Branco, U. Porto, 2005

FLUXO - PSICOLOGIA DA EXPERÊNCIA ÓPTIMA


O FLUXO DE CSIKSZENTMIHALYI

O fluxo é um estado mental de operação em que uma pessoa está totalmente imersa no que está fazendo – Mihaly Csikszentmihalyi (lê-se Chicks send me high)
[Flow – fluxo – momentos de experiência óptima, momentos de elevação, leveza, flutuação – caracterizado por uma sensação de imersão completa, atenção concentrada … e bem estar; decorrem numa situação em que a pessoa tem objectivos claros a concretizar e acesso aos resultados da sua acção. Por ex. em artistas, religiosos e atletas]
Fluxo é o estado de total absorção numa determinada atividade, que, embora possa ser exigente ou até mesmo estressante enquanto você a está realizando, oferece posteriormente um profundo senso de satisfação”.
As pesquisas concluíram que as pessoas, enquanto trabalham, prefeririam fazer outra coisa. Todavia, é no trabalho, e não no lazer, que são encontradas as maiores fontes de fluxo. Isso ocorre porque é no trabalho que geralmente se encontram todos os elementos do fluxo: são atividades que apresentam metas factíveis, exigem o investimento ordenado de energia psíquica e concentração, fornecem feedback imediato, e cujas tarefas exigem habilidades que estão no limiar de nosso controle.
Mais um vez, enfatiza-se que as experiências de fluxo são menos ditadas por condições externas, e mais influenciadas pelo modo com que o indivíduo trabalha.
O fluxo é alcançado quando várias das condições abaixo são encontradas em uma atividade:
• Objetivos claros – tanto as expectativas quanto as regras.
• Concentração – a pessoa se concentra na atividade em questão, não fazendo mais nada em paralelo.
• Perda da autopercepção – a pessoa deixa de preocupar consigo mesma.
• Percepção distorcida do tempo – parece que o tempo anda mais rápido.
• Respostas rápidas – a pessoa tem feedback imediato e permanente dos seus sucessos ou fracassos.
• Equilíbrio entre os desafios e as habilidades – nem muito fácil nem muito difícil.
• Sentimento de controle – a pessoa se sente no controle do que está fazendo.
• Recompensa intrínseca – a atividade por si só é recompensadora, não havendo necessidade de recompensas externas.
• Quando se encontram em estado de fluxo, as pessoas praticamente "tornam-se parte da atividade" que estão praticando e a consciência é focada totalmente na atividade em si.
Nota: não é necessária a presença de todas estas sensações para experienciar o estado de fluxo.
Talvez a questão mais importante do fluxo de Csikszentmihalyi seja o equilíbrio entre os desafios e as habilidades. Um desafio muito maior do que as habilidades das pessoas leva à ansiedade. Já um desafio baixo, para pessoas com muitas habilidades, leva ao tédio
Martin Seligman explica, no livro Felicidade Autêntica, com absoluta clareza, esse drama da sociedade atual: buscam-se “atalhos” para a felicidade, em coisas que levam somente a prazeres (televisão, jogos eletrônicos, bebidas), em detrimento das gratificações, que são as emoções positivas justamente ligadas ao desenvolvimento de nossas forças e virtudes.
A personalidade autotélica
Esse é o meu capítulo predileto do livro de Csikszentmihalyi (Fluir, uma psicologia da felicidade) um dos melhores capítulos que já li em toda minha vida, particularmente o trecho que vai da página 119 até a 127. Indivíduos com personalidade autotélica são aqueles que fazem as coisas por si mesmas, tendo a experiência como meta principal, em vez de serem motivados por recompensas externas. Pessoas autotélicas não dependem de metas externas para se satisfazerem, uma vez que encontram gratificação nas tarefas por si mesmas.
O “ser autotélico” está relacionado sobretudo ao que a pessoa faz com seu tempo, em particular com seu tempo livre. O exercício de habilidades só é possível em atividades que tendem a produzir fluxo, como o trabalho intelectual e o lazer ativo, ao invés do entretenimento e lazer passivos.
Para ter uma personalidade autotélica, é preciso investir energia psíquica no que ocorre ao seu redor, e se dedicar a atividades por elas mesmas, sem esperar uma resposta imediata. Preocupando-se menos consigo mesmas, elas possuem mais energia psíquica para experimentar a vida. É muito importante controlar nossa atenção, e dirigi-las para atividades que explorem nossas habilidades, nossas forças e virtudes. O mundo está cheio de coisas interessantes para fazer, e não há desculpas para ficar entendiado.
Ao invés de nos preocuparmos tão somente com o futuro, deveríamos é investir nossa vontade e nosso tempo em atividades que nos façam apreciar a vida aqui e agora.
O Inquérito Apreciativo consiste numa busca colectiva das causas do sucesso no grupo de pessoas considerado, o que é completamente diferente de buscar a raiz das causas do fracasso, infelizmente bem mais típico da nossa forma colectiva e individual de estar na vida.

Csikszentmihalyi, M. (2002). Fluir. Lisboa: Relógio d’Água.
Durante mais de vinte anos, Mihaly Csikszentmihalyi estudou estados de «experiência óptima», os estados em que uma pessoa desfruta verdadeiramente de alguma coisa ou em que se concentra activamente numa tarefa. O autor chamou estados de «fluxo» a estes estados de satisfação profunda. FLUIR explica como o fluxo pode ser controlado, provocado e como podemos recorrer à sua energia para enfrentar os desafios concretos da vida.

Dicas para melhorar o comportamento inteligente


Diminua a impulsividade:

Com muitos alunos é preciso fazê-los parar e pô-los a pensar. Eles têm de saber que é uma expectativa valorizada pelo professor. Também temos de lhes dar um método simples para considerar a situação, como por exemplo clarificar o problema/a tarefa; faça um plano; onde é que vamos? Há mais algum lado aonde chegar?
Aumente a persistência:
Alguns alunos desistem demasiado depressa ou nem sequer começam porque têm uma fraca auto-estima ("sou um tolo") ou não sabem por onde começar ou continuar, porque a tarefa é demasiado difícil. As tarefas têm de ser desafiadoras e expandir os alunos. Antes de pormos os alunos a correr temos de ensiná-los a andar.
Ao princípio, apresente os problemas pelo lado fácil para demonstrar a metodologia e lhes dar um êxito antecipado. Àqueles que se estão a debater com dificuldades, mostre-lhes e diferencie expandindo a tarefa para os que se mostram mais capazes. Ajude, apoie e treine: não é nada do outro mundo, é ensino sadio.

Reduza o descuido:

É resultado da impulsividade ou falta de concentração. Temos de levar os alunos a terem o hábito de verificar e reler o seu trabalho sempre que possível. Dar-lhes tempo e incentivo para que comecem a aprender que isto é uma expectativa do professor. Vai haver alturas em que não será apropriado verificar, no nosso programa «corre-corre» e «orientado para os testes».

Ensine-os a terem uma mente aberta:

Não é uma tendência natural das crianças e dos adultos. Sentimo¬-nos muito mais seguros na certeza do que na incerteza, portanto não é de surpreender que saltemos para a primeira conclusão e fiquemos presos a ela. Infelizmente isso incentiva uma resistência ao pensamento flexível e tende a produzir «mentes fechadas».
Temos de incentivar «mentes abertas» e desincentivar as «mentes fechadas». Elogiar o bom começo que eles tiveram ao entrarem nas suas primeiras especulações e incentivá-los a considerar os «porém» os «mas» e os «se olhares para isso de outra forma».
Se levantar este tipo de desafios primeiro, este comportamento vai começar a ser transferido para os alunos. Além disso, se os incentivarmos a desafiarem-se uns aos outros desta forma, é de se esperar que eles interiorizem cada vez mais este comportamento e comecem a desafiar o seu próprio pensamento

Incentive as perguntas:

As crianças nunca param de fazer perguntas, infelizmente elas são geralmente do tipo: «POSSO ir à casa de banho?» e «o que é que eu faço a seguir?»: Temos de exemplificar, procurar e elogiar as perguntas que promovem a discussão e o conhecimento. As perguntas do pensamento flexível como: «o que aconteceria se .. ), «Como é que eu sei se é verdade?», «Qual é a prova? Qual é o teu raciocínio?», etc.

Estimule a curiosidade e a admiração:

Muitas crianças perdem a sua curiosidade natural depois de alguns anos de escola. Elas param de reparar e fazer perguntas: olham, mas não vêem. Vão olhar para uma árvore, por exemplo, mas não reparam que as folhas são diferentes, que elas parecem ficar mais pequenas na direcção da copa da árvore.
Proporcionemos às crianças admiração e surpresa sempre que possível: desde os voos migratórios para África sem um único pouso no solo aos recordes fantásticos do Guiness Book of Records, aos números misteriosos e à literatura maravilhosa. Façamos nós as «perguntas da curiosidade) - do tipo «Porque será ... ?» - e esperar que as crianças comecem a copiar o nosso comportamento e partilhem do nosso entusiasmo.

Temos de ser mais explícitos a lidar com estas barreiras de modo a que o comportamento inteligente seja «ensinado» por oposição a ser «captado».
As principais coisas a lembrar são:
1. Crie um ambiente de sala de aula que conduza à pesquisa.
2. Procure sempre valorizar o raciocínio.

A ÉTICA E A POLÍTICA


«A nossa crise política é uma crise essencialmente ética»

A palavra Ética é usada a torto e a direito, mas o que quer realmente dizer?

A palavra vem de um termo grego que acabou por designar a interioridade humana da qual brota o agir. Mas hoje podemos dizer que há pelo menos duas maneiras de ver a Ética: a ética como o Bem por oposição ao Mal. Ou a Ética como busca do melhor. E a busca do melhor significa que há atitudes boas, mas que umas são melhores do que outras. Penso que o ideal da Ética é a procura da vida boa, que não é necessariamente a 'boa vida' [risos], mas sim o facto de ter uma vida que realizou qualquer coisa.

Por vezes usa-se 'moral' como sinónimo de ética...

A ética, ao contrário da moral, não começa por falar de modo negativo. Não nos coloca no campo das obrigações. A moral diz 'não faças isto', fala dos deveres, do que não se deve e do que se deve fazer, ao passo que a ética diz como se age melhor, e como se vivem os grandes valores de vida.

Se calhar educamos com demasiados 'não faças'?


Antes de falar muito em deveres, devíamos reflectir sobre os grandes valores. Aí os mais novos perceberiam por que é que vale a pena seguir determinadas regras. No contexto da educação, dever-se-ia sempre dizer o motivo pelo qual se proíbe um comportamento: é com efeito em nome de um valor positivo que se proíbe qualquer coisa. A proibição, a regra apenas se justificam pelo valor que promovem e não pelo facto de provir de uma autoridade arbitrária.

Mas de onde vêm os valores? Nasceram todos simultaneamente, são revelados, descobrem-se?

Primeiro é preciso ter consciência de que todos os valores foram descobertos numa cultura e numa época específica da história da humanidade. O valor é sempre inventado por alguém que o vive. São «agidos» antes de serem pensados. Mas se só os pensássemos e ninguém continuasse a vivê-los, então entrariam em crise e poderiam perder-se. É preciso acrescentar, contudo, que os valores não estão em pé de igualdade.

Como num jogo de cartas, um valor pode 'cortar' os outros, agir como um trunfo?

O filósofo alemão Max Schel, que criou uma espécie de tabela de valores, mostra que os valores mais básicos são os valores vitais: precisamos de comer e de beber, de ser abrigados; estes são valores que mantêm a vida biológica. Depois há valores mais elevados, por exemplo os estéticos, que já são especificamente humanos. Os valores estéticos não são puro luxo, a beleza transfigura a nossa vida, mas não substituem os primeiros. Do mesmo modo, há valores espirituais, que também implicam todos os precedentes.

E são universais, 'servem' para toda a humanidade, independentemente da sua cultura?

Os valores mais altos são absolutos e universais. Mas isso não significa que sejam praticados por todo o lado e em todas as épocas. Portanto, não se trata de uma universalidade «de facto», como se estivessem presentes em todas as culturas. Tudo se passa como se houvesse uma exigência de «universalidade»: levaram muitos séculos a serem descobertos, vividos e depois proclamados. Significa então que se os perdermos - e podemos perdê-los - haverá um grave recuo em «humanidade» e na humanidade.

Quer dar-me um exemplo de um desses valores absolutos?

A dignidade do ser humano, por exemplo, e os valores ligados ao respeito por essa dignidade. Quando digo que um determinado valor é absoluto, quero dizer que o «valor» desse valor já não depende da cultura na qual foi descoberto, mas que vale por si próprio, sem que seja necessário recorrer à sua história para o compreender. Além disso, há outra coisa que merece reter a nossa atenção: os valores são sempre vividos em primeiro lugar por minorias activas.

O contrário das maiorias políticas, portanto?

A ética e a política não correm de modo simultâneo. Em democracia, a política faz-se com maiorias, mas a ética «progride» com minorias. Por exemplo, a justiça social parece-nos um valor adquirido, mas no século XIX não era fácil fazer uma greve no local de trabalho; houve gente que morreu por esse valor. O que mostra que são muitas vezes os heróis que conseguem promover um valor, até que este seja reco-nhecido pelas grandes maiorias políticas e sociais.

E aí transformam-se em lei?

As leis políticas incorporam valores éticos que se tornaram consensuais. Porque a nível ético não podemos impor a ninguém os nossos valores, de que resulta a sua fragilidade, mas também a sua nobreza.

Mas acredita que a política pode ser ética?

Devia, e podia ser! Uma prova lateral disso é que nenhum político democrático vai dizer que não acredita na ética ou pode prescindir dela; o que significa que todos reconhecem, pelo menos, a necessidade de ética no desempenho das funções políticas. Mesmo quando não a praticam.

A confiança dos portugueses nos políticos está num ponto baixo...

Isto acontece porque, se por um lado, a política não é capaz, por si mesma, de tornar as pessoas muito éticas, por outro, sem a ética a política entra em crise. A política apenas sanciona as infracções às normas, eventualmente éticas, codificadas nas leis. Não entra no âmago da consciência humana nem nos actos, eventualmente eticamente reprováveis, que não são conhecidos ou que não fazem parte das exigências legais. A política «obriga», com a presença de sanções. Na ética, não há sanções que provêm de fora (salvo no contexto educativo), mas há a autodegradação ética, quer ela seja conhecida dos outros, quer não. Por exemplo, para a lei portuguesa, o aborto legal até às dez semanas é considerado «politicamente» como neutro, aceitável, qualquer que seja a avaliação ética pessoal.

Ou seja, para recuperar a credibilidade, os políticos têm de ser intrinsecamente éticos?

A política não será capaz de voltar a encontrar a sua credibilidade se não houver ética. Penso que é importante entender que a crise política da sociedade portuguesa é uma crise primordialmente ética: há uma crise de credibilidade dos políticos, uma falta de confiança da sociedade civil no modo como os políticos desempenham as suas funções.

Mas o que podemos fazer para garantir essa mudança?

Se calhar temos de pensar no futuro, porque o grande motor de ética é a educação.
A ética ensina-se, nomeadamente na escola?
A ética não se ensina, nem se aprende apenas teoricamente, mas propõe-se e testemunha-se. Há modelos. A função dos modelos é fundamental em todos os níveis de ensino. Os professores de que nos lembramos não são, necessariamente, os mais inteligentes, mas antes aqueles que nos marcaram pela sua atitude para connosco, pela sua postura perante a vida.

Estamos a perder valores, como tanto se repete, ou todas as gerações reagem perante a forma como os mais novos os recriam?

Atenção, o modelo não existe para ser imitado a papel químico, mas, no meu entender, houve, de facto, um recuo da dimensão ética da gestão política e administrativa da sociedade. O interesse pessoal parece com efeito predominar, muitas vezes, sobre o serviço público. Mas um recuo ético não é necessariamente definitivo.

Precisamos, portanto, de melhores modelos, é isso?

Sim, porque os valores que deixam de ser vividos esbatem-se progressivamente, até serem revividos por outras pessoas ou por outras gerações. Temos a esperança, e a esperança permite-nos pensar que nunca são definitivamente perdidos.
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Corremos o risco de politizar a ética
«A forma de pensar a ética é uma das coisas que mais me preocupa na actualidade. Por exemplo, estando no Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) desde a sua fundação, verifico que a busca de consensos acaba, várias vezes, por fazer da ética a procura do mais pequeno denominador comum, aceitável por todos os membros, em vez de procurar e valorizar as respostas mais éticas e eventualmente mais exigentes. Muitas vezes, na discussão de uma Comissão de Ética qualquer, não se procura o ideal, a recomendação do melhor caminho, mas apenas o que a sociedade é capaz de aceitar. Considero que se corre assim o risco, bem real, de politizar a ética.»

Fazer escolhas
«Não temos a capacidade de viver todos os valores do mesmo modo, por isso temos de fazer escolhas. Por exemplo, quando um estudante na véspera de um exame se encontra face a dois comportamentos possíveis, ir para a praia (e descansar é um valor), ou estudar, tem de hierarquizar os valores. Isto gera um dever: dizer não à praia. É um valor superior que se torna dever quando é preciso superar um obstáculo, o que implica aparentemente um certo sacrifício. Mas as pessoas totalmente reconciliadas consigo próprias não vivem a vida ética a partir de deveres.»

Entrevista com o prof. Michel Renaud

quinta-feira, 2 de junho de 2011


Porque nos recordamos apenas de algumas situações de infância?
A questão de apenas nos lembrarmos de algumas coisas que aconteceram durante a infância tem intrigado os cientistas. Um dos grandes mistérios por descobrir é a razão pela qual as pessoas não se conseguem recordar de acontecimento que ocorreram até aos 3 ou 4 anos de idade.
No Canada, um grupo de investigadores revelou que algumas crianças conseguem recordar situações quando tinham menos de 2 anos, no entanto as mesmas são frágeis e desaparecem quando atingem os 10 anos de idade.
Num estudo publicado na revista “Child Development”, os investigadores pediram a 140 crianças, com idades entre os 4 e os 13, para descreverem as três primeiras recordações, tendo repetido o exercício com as mesmas crianças, dois anos mais tarde.
Em média, as 50 crianças mais novas, com idades entre os 4 e os 6, conseguiram recordar os momentos anteriores aos 2 anos de idade. No entanto, quando foram entrevistados dois anos mais tarde, apenas duas das 50 crianças conseguiram recordar a situação mais antiga.
Por outro lado, 22 das 61 crianças que tinha entre 10 a 13 anos, conseguiram tanto na primeira entrevista, como na segunda, recordar a situação mais antiga.
"Em 10, essas memórias são cristalizadas. Essas são as memórias que mantemos", diz a psicóloga Carol Peterson no Memorial University of Newfoundland.
A incapacidade dos adultos para recordar os primeiros anos da infância, também conhecido como amnésia infantil, tem sido objecto de especulações há mais de um século.

Para alguns investigadores a capacidade de recuperar memórias exige habilidades de linguagem que não se desenvolvem nos primeiros 3 ou 4 anos de vida. Outros acreditam que as crianças podem recordar fragmentos de cenas do início da vida, no entanto não podem criar memórias autobiográficas.

A mentira da verdade


Há formas de dizer a verdade que se convertem em mentiras. Por isso é importante avivar o discernimento para não se deixar enganar. Como nos é contada a verdade através da imprensa, da escola, do poder, da publicidade, da versão oficial? Porque se afastam sempre tanto os cálculos dos participantes numa manifestação, dependendo de quem os faz, sejam os polícias ou os organizadores? A ingenuidade revela-se o pior aliado para decifrar o sentido da realidade.

Convém, antes de mais, advertir que se podem dizer as maiores mentiras dizendo verdades incontestáveis. Uma noite, o oficial en¬carregado do diário de bordo embebedou-se e, dessa vez, a descri¬ção do dia teve que ser redigida pelo próprio capitão, que, no final, acrescentou esta nota:

"Hoje, o tenente embebedou-se". Nota que, naturalmente, ofendeu o oficial, tanto que no registo do dia seguinte se permitiu acrescentar, também, uma nota: "Hoje, o capitão não se embebedou".
Eis uma forma de alterar a verdade: explicá-la de forma que a linguagem leve a interpretá-la no sentido contrário. Não restam dúvi¬das de que, neste relato, a intenção do oficial não podia ser mais perversa. Dizer a verdade era taxar de bêbado alguém que, por acaso, nunca bebia.

Outra forma de forçar a verdade é descontextualizar a expressão que a manifesta. Uma explicação fora do seu contexto pode ter um sentido diferente daquele que o autor quis, realmente, manifestar. Demonstrá-lo-ei com uma anedota que Luis Carandell relata na sua obra El Show de Sus Senorías:
O arcebispo de Canterbury realizou, numa ocasião, uma viagem a Nova Iorque.
- Eminência, tenha muito cuidado com os jornalistas de Nova Iorque porque forçam, frequentemente, as declarações - disseram ao arcebispo antes de sair de Londres. Ao desembarcar no aeroporto nova-iorquino havia uma conferência de imprensa e um dos informadores perguntou ao prelado:
- Monsenhor, o que opina sobre os bordéis do este de Manhattan?
- Há bordéis no este de Manhattan? - perguntou o arcebispo, exagerando na prudência. No dia seguinte, alguns jornais de Nova Iorque tinham como título de primeira página: Primeira pergunta do arcebispo de Canterbury ao chegar ao aeroporto: existem bordéis nos bairros do este de Manhattan?

De facto, foi a primeira pergunta que tinha feito ao chegar ao aeroporto. Estava, inclusivamente, gravada. Qualquer um podia comprová-lo. Dizer a verdade supunha uma mentira flagrante.
Outra forma de enganar é dizer meias-verdades. A publicidade está cheia de exemplos verbais e icónicos. Mostram-nos uns brinquedos que parecem de tamanho natural quando a sua verdadeira dimensão é a miniatura, mostram-nos um movimento que só existe na mente do fabricante ou do publicista, confeccionam-se slogans carregados de ambiguidades e duplo sentido ...

Os números mostram ser uma via magnífica para ensombrar o verdadeiro significado dos factos. Tornou-se um clássico a gestão das estatísticas como verdade manipulada. Se um come um frango e o outro não come nada, a estatística dir-nos-á que cada um comeu meio frango. Se um tem dois milhões e o outro não tem nem um tostão, a média aritmética demonstrará que cada um tem um milhão.
As verdades inquestionáveis das estatísticas estão muito longe de reflectir a verdadeira realidade das coisas. O seu significado autêntico. Os números, até mesmo os números, mentem. Uma organização sueca perguntou ao computador onde deveria colocar um sanatório
para pessoas mais velhas. O computador respondeu em Soria ... porque nos últimos anos não tinha morrido ali nenhum sueco.

A armadilha dos números é muito perigosa. Dizer que todos os meninos e meninas do país já estão escolarizados ou que há muitos milhares de estudantes na Universidade não nos leva a considerar o que é que aconteceu com os que já estão dentro das aulas. O que acontece à qualidade se só nos preocuparmos com o facto de ser¬mos muitos? A grandiloquência dos números conduziu-nos, uma vez mais, ao engano.

A artificialidade e a suplantação adulteram a realidade. Havia uma rosa tão bonita no campo que parecia de plástico. Num concurso de imitadores de Charlot, celebrado em Liverpool, apresentou-se, incógnito, Charles Chaplin e obteve o segundo prémio.
Outra forma de esbater a verdade é utilizar uma linguagem retórica que a camufla e esconde. As máscaras com que vestimos a verdade (umas vezes por interesse, outras por compaixão, outras por pudor, outras por ignorância .. .) são infinitas. Avanço elástico para a retaguarda, diziam os alemães, para disfarçar, com a palavra, um re¬trocesso, uma fuga.

Quem pode ter interesse em mentir? Uma parte da falsificação da realidade provém da dificuldade em expressar, fielmente, a realidade, uma realidade sempre complexa que nunca tem fronteiras e que apresenta vertentes obscuras, de difícil interpretação. Outra parte provém do jogo de interesses dos que querem vender ou mandar ou dominar ou controlar ou manter-se no poder. Com boa ou má intenção, oferecem, aos demais, uma versão da realidade distorcida pela própria visão ou pelo desejo de conseguir adesões, votos ou compras. O exercício da persuasão não é garantia do respeito da ética.

Há que atribuir parte dos enganos à má vontade de quem se quer tornar rico ou poderoso. Outra parte, há que atribuí-la à estupi¬dez e à ingenuidade de quem se deixa enganar. Um vendedor sagaz vendeu duas máquinas de ordenhar a um granjeiro que só tinha uma vaca e, além disso, ajudou-o a financiar o contrato, aceitando a vaca como pagamento por conta das duas máquinas. O vendedor era, sem dúvida, hábil. Poderíamos, também, admitir alguma sus¬peita sobre a estupidez do granjeiro.

Miguel Santos Guerra. No coração da escola.